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CAMÕES, GRANDE CAMÕES: A ARTE DE EMULAR

 



Inicio aqui uma sequência de poemas inspirados em Luis Vaz de Camões, naquilo que seria uma forma de homenagear, imitar, seguir, admirar e acima de tudo emular - esta que é a prova maior do reconhecimento a um poeta.


Emular Camões seria essencialmente desafiá-lo.

E como sabemos a imitação é um procedimento comum na didática das artes.

Há, todavia, uma significativa diferença entre imitar e emular.

Imitar é aprender; emular é superar.

É o desafio à excelência.

Vou chamar de A Arte de Emular a esse misto de admiração, respeito e superação.

Emular é um gesto comum aos sonetistas do Doce Estilo Novo, surgido com a lírica italiana e humanista.

Afinal, imitar e emular em algum momento se tocam.

O Doce Estilo Novo surgiu para cobrir com galanteio algo que a lírica amorosa medieval mostrava-se como pequenos dramas trágicos - um deletério e estranho comportamento "assassino", um "ladrón" e "cruel", dentre outros termos da natureza poética dos trovadores. 

O doce agora desafiava o trágico.

Com os poetas-cantores, os trovadores, eles chamavam as damas de "mia Senhor", não havia ainda "senhora", o feminino de Senhor - e dentre tantas peculiaridades de linguagem e temas - eu recorto aqui apenas a questão da dramaturgia lírica medieval apegada ao estranho senhor que "me quer matar", chamado Amor. 

 "Pois nací nunca vi Amor,

e ouço del sempre falar.
Pero sei que me quer matar,
mais rogarei a mia senhor
     que me mostr'aquel matador,
     ou que m'ampare del melhor.

Pero nunca lh'eu fige ren
por que m'el haja de matar;
mais quer'eu mia senhor rogar,
polo gran med'en que me ten,
     que me mostr'aquel matador,
     ou que m'ampare del melhor.

Nunca me lh'eu ampararei,
se m'ela del non amparar;
mais quer'eu mia senhor rogar,
polo gran medo que del hei,
     que mi amostr'aquel matador,
     ou que mi ampare del melhor.

E pois Amor ha sobre mí
de me matar tan gran poder,
e eu non o posso veer,
rogarei mia senhor assí
     que mi amostr'aquel matador,
     ou que mi ampare del melhor."

(Nuno Fernandes Torneol - século XIII)


 

Camões, por sua vez, no áureo e longo século XVI, vem e muda peremptoriamente tudo isso, agora a teremos o Doce Estilo Novo, nas palavras e na forma (o soneto).

É um belo exemplo da mudança estilística operada na poesia que era cantada e agora passa a ser conceitual, imagética, sensorial e não menos sonora de "son" (soneto) e pictórica - essencialmente renascentista - uma verdadeira pintura luminosa - cheia da luz dos olhos e da alma.


Soneto IX

 

Quando da bela vista e doce riso,
tomando estão meus olhos mantimento,
tão enlevado sinto o pensamento
que me faz ver na terra o Paraíso.

 

Tanto do bem humano estou diviso,
que qualquer outro bem julgo por vento;
assi, que em caso tal, segundo sento,
assaz de pouco faz quem perde o siso.

 

Em vos louvar, Senhora, não me fundo,
porque quem vossas cousas claro sente,
sentirá que não pode merecê las.

 

Que de tanta estranheza sois ao mundo,
que não é de estranhar, Dama excelente,
que quem vos fez, fizesse Céu e estrelas

 

Luis Vaz de Camões


Por sua vez o genial Bocage assim emulava o seu mestre, comparando-o à sina de desterros e exílios e não necessariamente no talento.


CAMÕES, GRANDE CAMÕES, QUÃO SEMELHANTE.

Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
Igual causa nos fez, perdendo o Tejo,
Arrostar co sacrílego gigante.

Como tu, junto ao Ganges sussurrante
Da penúria cruel no horror me vejo;
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante.

Ludíbrio, como tu, da sorte dura,
Meu fim demando ao céo, pela certeza
De que só terei paz na sepultura.

Modelo meu tu és, mas... oh tristeza!...
Se te imito nos transes da ventura,
Não te imito nos dons da natureza.

(Manuel Maria Barbosa du Bocage)


EM LOUVOR DO GRANDE CAMÕES

Sobre os contrários o terror e a morte
Dardeje embora Aquiles denodado,
Ou no rápido carro ensanguentado
Leve arrastos sem vida o Teuco forte:

Embora o bravo Macedónio corte
Coa fulminante espada o nó fadado,
Que eu de mais nobre estímulo tocado,
Nem lhe amo a glória, nem lhe invejo a sorte:

Invejo-te, Camões, o nome honroso;
Da mente criadora o sacro lume,
Que exprime as fúrias de Lieu raivoso:

Os ais de Inês, de Vénus o queixume,
As pragas do gigante proceloso,
O céu de Amor, o inferno do Ciúme.

(Manuel Maria Barbosa Du Bocage)


Vou me deter aos trovadores, Camões, Bocage e agora Carlos Drummond de Andrade que também emula Camões.

Em especial ao tema comum ao renascentista de Os Lusíadas: o DESCONCERTO DO MUNDO, um tópico lembrado desde o Eclesiastes e que repercute, agora, nos pedregosos caminhos das Minas Gerais.

Mas, antes lembre-se do que acontece debaixo sol até mesmo aos velozes, aos fortes, aos sábios e prudentes - nada te garante nada.

O mundo sofre de um Desconcerto.


"Percebi ainda outra coisa debaixo do sol:
Os velozes nem sempre vencem a corrida;
os fortes nem sempre triunfam na guerra;
os sábios nem sempre têm comida;
os prudentes nem sempre são ricos;
os instruídos nem sempre têm prestígio;
pois o tempo e o acaso afetam a todos."

Eclesiastes 9:11

OS LUSÍADAS CANTO I, 106
Luís Vaz de Camões

"No mar tanta tormenta, e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida!
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade aborrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme, e se indigne o Céo sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?"


Da água salgada lusitana à pedra mineira: há um maquinário em desconcerto que aqui deixo completo:


A MÁQUINA DO MUNDO
Carlos Drummond de Andrade


E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.




José Olympio Editora – Rio de Janeiro, 1985, pág. 300.


Referência da foto montagem acima: www.segredosdomundo.r7.com





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