Pular para o conteúdo principal

A ORIGEM DO FOGO — LENDA KAMAYURÁ

 

 Lenda colhida pelos irmãos Villas Boas. Posto Capitão Vasconcelos à margem do arroio Tuatuari, em 16/06/1955.

 

 Na Amazônia, todos os povos indígenas têm lendas sobre a origem do fogo. Elas diferem entre as etnias, embora o processo seja o mesmo: uma flecha partida em pedaços e uma haste de urucum. 

Das lendas que ouvimos sobre a origem do fogo, a que mais nos pareceu interessante foi a narrada por um velho Kamayurá.

 

 


                                               

“Canassa — figura lendária, caminhava no campo margeando uma grande lagoa. Tinha a mão fechada e dentro, um vaga-lume.

Cansado da caminhada, resolveu dormir. Abriu a mão, tirou o vaga-lume e pôs no chão. Como tinha frio, acocorou-se para aquecer à luz do vaga-lume. Nisso surgiu, vindo da lagoa, uma saracura que lhe disse:

— Canassa, esse fogo não é bom. Com ele, você não poderá assar peixe, sua luz é fraca e sem calor. O corvo tem fogo, peça a ele.

— Não, exclamou Canassa. Ele voa muito alto e tem medo de mim.

— Ensinarei um jeito, disse a saracura. Mate um veado, deixe apodrecer e entre na barriga dele. Quando o corvo vir devorá-lo, você o segure e só solte quando ele lhe der fogo.

Canassa resolveu seguir o conselho da saracura. Matou o veado e três dias depois se escondeu dentro da barriga da carniça. Momentos depois apareceram diversos corvos. Um desceu para examinar a caça.

Porém, não tinha cabeça vermelha. Canassa esperou até que voltasse. Não demorou muito e voltaram trazendo o urubu-rei.

Este se aproximou e começou a comer, quando Canassa, num golpe ágil, segurou-lhe uma perna.

— Solte-me, disse o urubu-rei — eu deixarei a carniça.

— Não, exclamou Canassa. Só soltarei se você me der fogo.

— Meu fogo está longe — explicou o urubu-rei, este que tenho na cabeça é brasa e se apaga.

— Mande buscar, retrucou Canassa.

O urubu-rei chamou uma mosca que passava e contou o que estava acontecendo. Pediu-lhe que fosse lá no alto buscar fogo.

A mosca partiu no outro dia. Voltou trazendo fogo que deu para o urubu-rei. Este passou o bico sobre a mosca, deixando-a brilhante — é a mosca varejeira.

Assim que entregou o fogo a Canassa, este o soltou. Muito contente com a lealdade de Canassa, o urubu-rei, lá de cima, exclamou:

— Canassa, esse fogo apaga. Quando isso acontecer, quebre uma flecha, amarre bem os pedaços e procure uma varinha de urucum. Tire com força a varinha com a ponta apoiada nos pedaços da flecha. Assim você terá fogo novamente.

Foi assim que Canassa conseguiu levar fogo para a aldeia”.


Depois de ouvir (e aqui, ler) essa história a pergunta que fica é: por quem e a quem são narrados os mitos?

 

Por narrar os fatos que realmente aconteceram os mitos são contados para um grupo iniciado. Em muitas tribos, eles não são recitados perante as mulheres e as crianças, isto é, perante os não-iniciados. 

Geralmente, os velhos instrutores comunicam os mitos aos neófitos, durante seu período de isolamento na mata, e isso faz parte de sua iniciação. 

M. Eliade observou que no hemisfério norte “os mitos não devem ser recitados senão durante o outono ou o inverno, e somente à noite”. 



[1] 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

UM DIA DE FESTAS - POR ADALBERTO MOURA NETO

Recital em frente à casa onde nasceu o poeta Antônio Tavernard, em Icoaraci. Hoje se concretiza o sonho de reerguer este espaço como a merecida Casa do Poeta, na visão de Adalberto Neto e endossado pelo autor do livro Moços & Poetas. Publico hoje, na íntegra um artigo de um grande agitador cultural de Belém, em especial de Icoaraci. Trata-se de um relato sobre uma justa homenagem àquele que é considerado como um dos maiores poetas paraenses: Antônio Tavernard.  O que me motiva esta postagem - e foi a meu pedido - é que a memória cultural do nosso estado vem de pessoas que fazem isso de forma espontânea. O Adalberto Neto é aquele leitor voraz e já um especialista no Poeta da Vila - e isso é o mais importante: ler a obra de Tavernard é encontrar: religiosidade, Amazônia, lirismo, musicalidade romântico-simbolista, um tom épico em seus poemas "em construção" e um exímio sonetista, e eu diria: Tavernard faz do soneto um minirromance.  Fico feliz pelo Adalberto Neto, o autor d...

AO CORAÇÃO DO MAESTRO (PEQUENA CRÔNICA PÓETICA)

O coração do poeta encontrou o coração do maestro em outubro de 2023 e desde então conversavam como se fossem dois parentes que fizeram uma longa viagem a rumos diferentes e que se reencontravam de repente. O coração do maestro ensinava; o coração do poeta ouvia. Quem ensina é o coração; quem aprende é também o coração. Dois irmãos. - Um coração para duas mentes diferentes. O coração do maestro regia as histórias, as lendas, os mitos, a ópera, a música; o coração do poeta dizia: sonho com o verso, o certeiro acorde, do maestro como ópera e como canção, como rima, como melodia, como ode. E alegria. Era muita cultura, para muito mais coração. Era quase todo dia, um projeto, uma ideia, uma música, um hino, o coração do poeta escrevia: "Homens livres e de bons costumes/ irmãos do espírito das letras/ levantai a cantar a Glória do Arquiteto Criador/ Homens Livres e de bons costumes/ Irmãos do espírito das Letras/ Aprumai a voz ao coração/ que a pena é mais forte que o canhão/ Às Letras...