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SONHOS: UMA LINGUAGEM DAS ARTES?


Benilton Cruz

Percebo, pelo menos, uma relação triádica no sonho: imagem, sensorialidade e mitologia, a perfeita combinação da arte.

Essa relação só se consolida através do conhecimento sobre nossa própria simbologia pessoal.

É como um quebra-cabeça que pode ser montado com peças novas e antigas.

Digo que os sonhos servem como uma montagem que evocam cenas multifacetadas da percepção do que é importante em nossas vidas, e cada peça registra códigos e cifras desafiando nossa inteligência.

Portanto, imagens retratam simbologias pessoais, angústias também.

O cérebro cria constantemente imagens, o inconsciente não tem leis à altura do que a parte consciente do cérebro diz que é capaz de organizar quando estamos despertos.

Talvez a grande tarefa do psicanalista seja criar analogias a partir das imagens criadas pelo consciente e pelo inconsciente: comparar imagens com a estrutura de uma linguagem verbal.

Imagens não são simbologias definidas, são símbolos se formando, eis a questão, e eis a dificuldade para se entender os sonhos, porque uma simbologia é mais fácil de ser entendida porque existem várias simbologias catalogadas, por sua vez, imagens “aleatórias” dos sonhos são mais difíceis.

A questão é que essas imagens são criações não apenas de nossos cérebros, são frutos da pele, do sensorial, de um sentido apurado à violência e à percepção do ao redor.

Não são apenas imagens da nossa subjetividade ou do nosso inconsciente, que também são estruturas à altura em tal complexidade - são respostas do nosso "ministério da defesa" particular e escondido em algum canto de nossa alma.

(Por isso, às vezes acordamos sobressaltados ao som de barulhos e ruídos suspeitos - o sonho funciona como alerta também, nessa conjuntura).

Sonhos são alertas, são conselhos.

Imagens, enquanto simbologias, são redutos de arbitrariedades.

Portanto, para se iniciar nos estudos dos sonhos, é melhor abandonar os feixes de simbologias prontas.

Cultivamos imagens, mas não fazemos simbologias catalogadas para simbologias pessoais, ou melhor, criamos a nossa Oníria, as nossas imagens e elas dificilmente se repetem e assim alargam e exercitam a nossa memória.

E a nossa inteligência.

Certo também que quando fazemos alguma comparação, não será uma simbologia totalmente independente da milenar cultura dos símbolos que a definirá.

Por isso, é interessante focar a atenção nas imagens primeiras, primárias ou primordiais: água, por exemplo, não pode ser descartada como símbolo de inquietação, já que a água é o elemento inquieto por natureza e tem em si a própria condição fluídica, instável.

Mudança.


Foto: underwaterinart.com



Mas, não estamos imunes às arbitrariedades.

As imagens também se fixam a um elemento determinante até porque somos animais criadores de símbolos para serem entendidos por alguma forma de linguagem.

Principalmente, por nós mesmos.

E como a linguagem é uma questão social, abrimos mão de nossas individualidades para sermos entendidos e aceitos pelos outros?

Sim.

Trata-se também de um jogo que ainda não sei até onde nosso cérebro permite-se jogar conosco.

Cada um é seu juiz e seu jogador nesse jogo.

Trata-se, portanto, de uma resignação, um acordo, uma partida que muda constantemente suas leis do jogo.

E a lei é a obscura linguagem do inconsciente.

Obscura ou pobre, como pode essa linguagem nos aparecer tão radiosa nos sonhos?

Tão impactante.

É comum acreditar que o inconsciente seja na sua linguagem cinética e carente de recursos ao mesmo tempo:

“[...] o inconsciente é bastante pobre em técnicas de representação daquilo que tem a dizer, limitando-se em grande parte a imagens visuais, muitas vezes precisando [...] traduzir com habilidade uma significação verbal em outra, visual: projetar, por exemplo, a ideia de morte na imagem de um caixão.

De qualquer modo, os sonhos são suficientes para demonstrar que o inconsciente tem a inventividade admirável de um cozinheiro preguiçoso e mal abastecido, que mistura os ingredientes mais diversos em um ensopado substituindo um tempero por outro de que não dispõe, aproveitando-se do que tenha encontrado no mercado naquela manhã, tal como o sonho se utilizará [...] dos ‘resíduos do dia’, misturando acontecimentos ocorridos durante o dia, ou sensações experimentadas durante o sono, com imagens vindas das profundezas da infância”. (Eagleton, Teoria da Literatura, p. 218).

Sonhamos com coisas impossíveis e isso é pobre?

A “culinária” amadora do sonho seria suficiente para nos despertar com aquelas imagens impressionantes e ao mesmo tempo inesquecíveis?

Não tenho pesquisa suficiente para revidar a citação do Eagleton, mas me parece que sua visão, estruturalista, binária e transitiva no sentido de movimentar do verbal ao visual, nos convida para uma revisão.

O inconsciente teria, a meu ver, um fluxo mais poderoso, porém menos explorado que o fluxo verbal da língua que falamos.
A linguagem dos sonhos não é a verbal e sim cinética, sinestésica, sensorial, obscura, para não dizer sensorial-imagético que é a mais precisa que a verbal, uma vez que hoje é confusa e limitada, falaciosa, desconfiada.

Por isso, os sonhos revelam.

Cheguei aonde queria chegar: os sonhos estariam mais para a poesia, a dramaturgia, a pintura, a música, os mistérios de nossas particularidades - são nossas manifestações plásticas, como as artes.

É uma estética.

Uma Oníria, uma terminologia unindo vida e arte, uma mitologia pessoal.

O nosso inconsciente estaria mais para um artista desconhecido que nos quer revelar o seu talento de decifrador do mundo.

E para provar isso devo lembrar a impressionante quantidade de artistas e cientistas que se inspiraram nos sonhos para compor suas obras: Michelangelo, Coleridge, Borges, Kekulé, dentre outros.

Não quero dizer que os sonhos só sirvam para os artistas ou alguns cientistas.

É que os sonhos seriam linguagens artísticas mal ou bem elaboradas pelo inconsciente, como ideias, inspirações, mensagens, cifras, notas, sensações, emoções, flashes da vida que o fundo somos: a matéria marginal de nossas marginais escolhas e de insolúveis soluções despertas.

Antes, analisar os sonhos pelas artes do que pela linguagem que se estrutura pela razão logocêntrica (que também é imagética e de musical-verbal consistência também inacabada).

E na era da tecnologia?

É possível passar de uma fase para outra como se fosse o sonho um vídeo-game?

Acho que sim, pois algo nos sonhos deve se destacar enquanto que outras vão se apagando em nossas mentes. E tendemos a explicar nossos sonhos pela nossa linguagem consciente e pelo nosso idioma, sob o uso da memória e sua inevitável reconstrução, remodelação.

Uma criança de seis anos me disse “eu estava sonhando e aí eu passei para outra fase...” como sonhamos várias vezes na mesma noite, entendi o que ele me quis dizer.

Através do costume que ele, enquanto um menino de seis anos tem de brincar com o vídeo-game, ele simplesmente associou passar de um sonho para outro, naquela mesma noite, como se fosse uma fase no jogo de vídeo game.

É engraçado, mas é mais ou menos assim.

O sonho é a prova de que você está vivo.

Há mais realidade, mais vida e vontade de viver no sonho porque estamos sim de certa forma mortos, cientificamente vegetativo, - e precisamos - assim, viver e sentir a vida, mesmo que dormindo.


Benilton L Cruz



Foto-narrativa: KAHN & SELESNICK, The Apollo Prophesies

Referência

EAGLETON,Terry. Teoria da Literatura Uma Introdução. Tradução Waltensir Dutra. Martins Fontes : São Paulo, 2006.

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