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AMAZÔNIA ETNOPOESIA: CLAUDINO TEMBÉ

 "A mãe natureza é a fonte". Assim começa a conversa com o pajé, o senhor Claudio Tembé, da aldeia Kanauwaru, perto de Tomé-Açu, no Pará. 

E tentei também dialogar - elas muito arredias - com as crianças Wiharu (Sol), Kuarary (Lua) e Mainumi (Borboleta) e em respeito a elas não tirei fotografias e à contra luz, fiz o registro via celular do mestre Claudio ou Claudino, como ele gosta de ser chamado. 

Claudino fala bem o português pois já trabalhara como curandeiro na cidade da pimenta, e preferiu retornar à sua aldeia, 12 quilômetros, após uma travessia de balsa, viagem curta.

Fui no carro do Otávio, meu aluno do Curso de Letras.

Havia comentado em sala de aula, no Polo de Tomé-Açu sobre Etnopoesia e o conhecimento dos povos originários da Amazônia.

Depois da travessia, estrada de areia e quando se chega à entrada da aldeia, vê-se terra preta e uma plantação de um arbusto comprido e o Otávio logo me fala:

- Tá vendo esse mato aí, professor?

- Sim, são muitos.

- Pois é, é o capim-furão, o chá é poderoso para o homem (faz o gesto com o braço levantado)

(Risos)

E continua:

- Mestre Claudino tem três mulheres, 11 filhos e 51 netos. Os filhos já estão integrados à cidade, alguns têm moto.

Chegamos.

Parece que eu estava em casa.

Quase três horas de conversa e ele me falou que aprendeu com seu pai alguns mistérios como se esconder na floresta e não perder nenhuma caça.

Homem forte, pernas de jogador de rúgbi, convive com três mulheres, como já disse e faço lembrar, com seus 11 filhos e 51 netos.

Curiosamente estava chateado quando cheguei pois havia perdido um veado na caça da noite anterior.

- Nunca me aconteceu, disse o pajé e cacique.

Ele me revelou que os antepassados vêm nos sonhos e escolhem os pajés, já os caciques são escolhidos pela aldeia, pelo espírito de liderança.

Foi autorizado como pajé aos 12 anos, quando seu avô lhe visitara e lhe dizia o que fazer: - curar.

E eu perguntei:

- Posso também ser um pajé?

- Ainda não, você ainda não recebeu seu antepassado em sonho! (Risos)

- Como o senhor sabe?

- Sei porque vi ontem você e como você chegava e o que trazia com você.

- Hum...

-Você é professor do professor dos meus filhos e netos, uma pessoa especial.

- Eu que agradeço por esse encontro, mestre Claudino. Conte- me do senhor. Quem é Claudino Tembé?

- Lembro do meu avô em sonho, devia ter uns 12 anos me dizendo para ser o pai curador, o pajé. É de pai para pai. Meu pai falava que meu avô conseguia hipnotizar os peixes na beira dos rios e igarapés e isso infelizmente não consegui aprender, esse segredo morreu com ele. E meu pai conseguia se esconder atrás de um terçado colocado em pé (ele se levanta e faz a cena, me explicando o trejeito da façanha)...eu consigo ficar atrás de um açaizeiro, me escondo fácil. (Ele sempre lacônico, e atento).

- Mas quem é o senhor?

- Sou a soma dos meus antepassados, e preciso ficar longe da cidade, as pessoas vem a mim, não vou a elas, curo com o fundo do copo de vidro, passo por cima da mordida de cobra, de escorpião e o veneno pula para dentro do copo (ele pega um copo de vidro Nadir Figueiredo e faz de conta que passa em um doente)

- Como assim, Seu Claudino?

- O prefeito me deu um cargo no hospital público e depois voltei, preciso da minha gente.

- Curar é uma arte? Um dom?

- Precisa de autorização.

- Suas mulheres não brigam de ciúme?

- São três mulheres, cada uma na sua idade. (Eu olhava para elas na conversa já em roda e não vi ciúmes, apenas responsabilidade com as crianças).

- O senhor pode me ensinar uma reza?

(Ele começa a rezar na língua tembé, por uns três minutos)

- O que o senhor disse? Só entendi que tem um jacaré...(risos)

- O jacaré é o bicho que leva todo o mal para o fundo do rio. Peça para ele levar o que lhe faz mal.

- Vou fazer, isso é fantástico, essa eu não sabia.

- E os animais que nos protegem? Fale da onça (é meu animal de poder)

- Ela come tudo, vou te dar esse colar, você vai ficar protegido (ele me entrega um colocar com ossos de cobra e com um coquinho, lixado e miçangas coloridas e depois retribuí com uma quantia em dinheiro)

- Ossos de cobra? Vou mundiar as mulheres? (Risos).

- Vai judiar (ele falava judiar, novamente risos) é proteção dessa onça que tá aí dentro, uma jaguatirica.

- Caramba, como o senhor saber?

- Venha no nosso ritual (ele falou o nome, não consegui lembrar o nome da festa deles)

Nisso fala um dos seus filhos: - ele está te convidando, ele não faz isso, ele gostou do senhor.

- Legal, preciso passar mais dias aqui.

- Sim, outra noite um menino entrou na roda sem autorização e cabeça dele cresceu que ficou três vezes maior...papai precisou parar e rezar em cima dele.

- É na lua cheia?

- Nem sempre.

- Seu Claudino, o senhor tá chateado porque perdeu o veado na caça? (Risos)

- Isso nunca me aconteceu, perdi o tiro.

Seu Claudino retorna à casa de madeira ao centro onde vive com as três mulheres e depois retorna com o meu colar ungido e ele me traz mais um, de presente.

Eu paguei uma quantia razoável pelos colares afinal eles vivem e sobrevivem de uma forma intermediária entre duas culturas, a deles e a nossa. 

Otávio me puxa de lado e diz que ele pede para levarmos cestas básicas.

A conversa adentra sobre os mistérios da natureza, as entidades, e ele fala:

- Tupano é quem manda.

Tem mais coisa que aqui jamais conseguiria resumir e fica apenas esse registro. 

Eu havia deixado o celular, gravando, em cima da mesa grande, retangular com dois bancos compridos de cada lado. E depois transcrevi nossa conversa.

Parecia que eu estava de volta ao banco escolar.

Prefiro assim, visitá-los,  conviver, viver e aprender com eles.


Agradeço publicamente ao meu aluno Otavio Silva que me levou ao local.

À aldeia Kanauwaru.








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