Causo é um gênero criado pelo povo e é com o povo que os causos ganham o perfil próprio de um gênero que transita entre a crônica e a narrativa curta como a anedota, com um pé no folclore.
Causo é uma prosa esparramada de liberdade, de realidade, do inusitado, da criatividade do povo e de suas personagens marcantes à memória de quem a vivencia. Caso seja o escritor inclusive o personagem desses causos, melhor ainda.
Causo é quando o escritor se acomoda ao cuidado de colocar cada palavra em seu devido lugar e assim, não deixar nada passar, principalmente porque o causo delineia que a linguagem é também um fenômeno político e nenhum gênero expressa tão bem os deslizes, as gafes, o hilário.
Volto a frisar: causo é um gênero literário, com suas características bem definidas, como narrativa curta, personagens populares, linguagem típica, palavras recheadas de neologismos e de história da própria língua e nada melhor que um escritor de causos para dar voz à voz do povo.
Causo é um gênero literário brasileiro, e por que não amazônico, de um Brasil adentro, nunca de um Brasil visto de fora e sim de um Brasil da gema, de gente expressando o tesouro da fala brasileira, este por sinal - longo objeto de estudo para qualquer pesquisador da nossa literatura.
E o escritor Octavio Pessoa em sua segunda edição do Causos Amazônicos comprova a minha tese de que lidamos com um gênero literário brasileiro, despojado de qualquer finura estilística todavia sem deixar de ter a elegância de quem sabe operar os segredos da linguagem humana e suas armadilhas.
E foi assim que eu havia escrito sobre o livro que: "Sempre há nos Causos Amazônicos algo em torno do mundo da comunicação. Destaca-se o manejo do autor com a peculidaridade regional de nossa fala, valores, costumes e principalmente com a inocência de personagens folclóricos nascidos da pressão de lidar com esse bem precioso: a linguagem humana e seus perigos. para citar apenas alguns bons momentos do livro, lembro da gafe do locutor amador; um 'speeker'. Enfim, são crônicas refinadas de humor e da indisfarçável memória bem vivida de um escritor entre as cidades de Parintins e Belém do Pará."
Nunca havia visto causos sobre o mundo da comunicação de forma tão aprazível, teria horas para citar quase todas as passagens hilárias do livro, mas vou me ater algumas, como em "O povo vai à forra", quando o speeker da rádio Rio Mar de Manaus-AM, na transmissão ao vivo deixou escapar praticamente, sem querer, ou por falta de habilidade com o microfone, uma orgia ao invés de uma solenidade reservada às mais altas autoridades do lugar em um "lauto jantar":
"-Estamos transmitindo direto do parque aquático do Rio Negro, onde o governador Álvaro Maia está oferecendo um lauto jantar para os intergrantes do Teatro Brasileiro dos Estudantes e para autoridades aqui presentes. O jantar começou a ser servido há dez minutos e já comeram o governador, o arcebisbo metropolitando, o presidente da Assembleia Legislativa e o prefeito municipal. Ainda vão comer a primeira dama, o comandante da Polícia Militar, o comandante do 27º BC e outros convidados".
Imaginem o rebuliço para consertar a gafe, afinal concessões de canais de rádio e televisão pertencem ao âmbito político - ainda bem que naquela época não existia a facilidade para gravar como hoje temos nos celulares.
Mas o povo tem a memória, fator decisivo a qualquer reserva do imaginário.
Começa aqui o sentido de o povo ir à forra, que virou uma lenda na história que ainda deve ecoar na memória dos moradores mais antigos dos arredores da capital amazonense e da região que faz divisa com o Pará, afinal a beleza do rádio é que ele transpõe fronteiras e une pessoas de diferentes culturas, e não é a toa que na Europa o rádio fez poliglotas seus diversos moradores de muitos países de idiomas diferentes, - assim como no Pará, o rádio deixou influências caribenhas na música paraense.
Este causo lembra que a política é um teatro mal ensaiado, às vezes, variando para a comédia ou para a tragédia mesmo.
Fim de linha para um candidato.
Citamos a página 53:
" -Meus eleitores, ontem à noite, nesta mesma praça, eu fui ofendido pelo candidato da coligação 'Povo no Poder!' Entre outras coisas, eu tive o desprazer de sentir a minha honra desvirginada!
- Casa! Casa! Casa! - Começou aquele coro que foi aumentando, aumentando, até toda a praça, em uníssono, apulpar o candidato."
Abro aqui um parêntese sobre a questão do humor e me volto agora ao sagrado, a um outro lado da Amazônia.
Em minha recente pesquisa sobre a Etnopoesia, a poesia oral dos povos originários da Amazônia, verifiquei que o livro de Octavio Pessoa recolhe uma página providencial daquilo que nós chamamos de medicina da floresta, é o causo de "A Medicina da Mãe Maria", na página 65 à 67, um retrato bem delineado de como se pode curar a carne rasgada por alguma dismintidura, na reza sete vezes benzida e anunciada com direito à repetição pelo enfermo:
"Carne trilhada
Carne rasgada
nervo rendido
nervo torto
com as palavras de Deus
e de São Frutuoso
o que é que eu coso?
- Carne trilhada, carne rasgada - a gente tinha que responder" (p. 67).
São os causos das Mães Marias e dos Pais Joões que estão morrendo sem deixar herdeiros na arte de curar, figuras como Raimunda Aracati, Maria Peruana, Dona Illosa e o Chico Coveiro que com óleo de andiroba consertavam pernas, braços e espinhelas caídas, sob o poder da forte oração citada sob a certeira numeração cabalística da cura e na impecável gramática lusitana na voz de uma benzedeira nos confins da Amazônia.
Dentre outros causos, eu me reservo a citar esses, por enquanto, e tem mais no:
PESSOA, Octavio. Causos Amazônicos. Ilustrações Maciste Costa, 2ª ed. Belém, PA : Paka-Tatu, 2014.
Quem é do interior da Amazônia sabe muito bem a riqueza que um causo tem!
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