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O AMOR GOSTA DO SOBRENATURAL

Quem gosta de história somos nós, ouvintes, leitores, escritores.


Quem gosta do sobrenatural é o amor.


É exatamente isso que trata o novo livro de Agildo Monteiro Cavalcante, em uma narrativa ágil e marcada pelo conhecimento histórico da causa, o que realmente aconteceu momentos antes da morte do governador tenentista Magalhães Barata que governou o Pará de 1930 a 1959.


O livro, o qual eu chamaria de crônica de um romance proibido, retrata dois aspectos: um de ordem jurídica, a questão do relacionamento estável, longe de ser aceito à época, e que seria apenas legislado, bem depois, quando, acolhido pela Constituição de 1988, - e claro, - essa segunda questão de ordem literária e também muito interessante: o romance fantástico, através da manifestação incessante, como entidade - o próprio governador, como espírito, clamando pela presença de Dalila Ohana.


Dalila tinha encantadores olhos negros, mulher de rica família seguidora da lei mosaica, com quem o governador paraense convivia há mais de vinte anos e que era a pessoa terminantemente proibida de assistir a extrema-unção de seu "esposo" por não ser casada com ele nos conformes civil e religioso, uma vez que o divórcio do primeiro matrimônio nunca havia sido consumado.


Dalila foi proibida também de assistir ao velório e de acompanhar o maior cortejo fúnebre da história do Pará.


Foi feita a Inquisição mais severa a uma mulher no âmbito do alto escalão da política em nosso estado - fato que haveria de render uma peça teatral de Edyr Augusto "Sem Dizer Adeus", encenada em 2010 no espaço cênico do Teatro Cuíra e também de ser assunto nos bastidores de Brasília aquando da Constituínte de 1987, ocasião na qual o saudoso jurista paraense Zeno Veloso haveria - e muito - em contribuir com a Lei da União Estável (hoje seria talvez chamada Lei Dalila Ohana).


O certo é que a fonte de tudo isso é simplesmente o livro escrito pela própria Dalila, o "Eu e as últimas 72 horas de Magalhães Barata" (Freitas Lopes: 1960), edição que haveria de ser sucesso de vendas e, dizem, tornando-se o primeiro Best-Seller aqui no Pará.


Fatos históricos à parte, o certo é que o livro do Agildo nos traz a ideia de que amor suporta tudo, menos a morte. 


O governador vira fantasma em busca da única pessoa que poderia aliviar os tormentos de uma leucemia terminal.



Em nossa pesquisa sobre a etnopoesia, encontramos sempre o dizer de que só o amor é real.


Só o amor cura.


Só o amor transita por mundos da nossa frágil realidade.


Só o amor perdura.


E o amor é terminantemente proibido.


O que seria a cura virou tormento: no recinto íntimo de um quarto de um casarão na Travessa Doutor Moraes, em um dia chuvoso, na quente Belém do Pará, o romance além da vida.


E como prenúncio da tragédia, a chuva - também personagem do romance - encena e molha o imaginário dos funcionários da casa onde morou o governador e nos habitantes da capital e na coragem de um político do mesmo partido de Magalhães Barata - personagem anônimo e importante -, que décadas depois, teve a ideia de retirar os restos mortais do governador de um fétido mausoléu no centro da cidade e o fazê-lo repousar definitivamente em um cemitério municipal, junto ao povo, assim entendendo o merecido descanso da personalidade mais popular do Pará nos anos de 1950. 





Recomendo o livro de Agildo Monteiro Cavalcante.

Editora Acadêmica das Letras: Belém PA, 2023.








Capa de "Eu e as Últimas 72 horas com Magalhães Barata", de 1960, o livro encontra-se disponível em PDF pala UFPA.




 E a epígrafe:

"Para os historiadores que amam a verdade."



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