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CONTOS DA AMAZÔNIA, DE IVANILDO FERREIRA ALVES

 

Contos da Amazônia, de Ivanildo Ferreira Alves.

 

 

Lançado em 2001 pela Editora CEJUP, em Belém PA, a obra reúne cinco contos que versam sobre o que já vem destacado na capa desta edição “O misticismo do homem amazônida, seus costumes, sua linguagem. A vida do povo destas paragens em prosa e verso”.

Vou colocar na sequência abaixo os nomes dos contos e um resumo comentado de cada um.

 

A LENDA DA MULHER CHEIROSA

 

O livro inicia com a Lenda da Mulher Cheirosa, uma narrativa contada pelos habitantes da marajoara Ilha de Tijoca, e podemos dizer que o tema trata de um assunto pertinente à profissão do autor que é advogado, tendo atuado como professor de Direito, que é a questão da justiça.

Pode uma entidade espiritual praticar a justiça para com um homem que seduzia as belas meninas do lugar?

Carlos Xibiu, nome que evoca a versão popular de vulva, sugerindo assim a ideia de mulherengo, era o sedutor do pacato lugarejo, homem que usava um olho de boto, benzido por Pai Vicente, no bolso da calça de linho branco, além do chamativo sapato vermelho – ou seja um verdadeiro femeeiro, o galã das redondezas.

E foi assim que atraia as meninas pela “prática de crime de sedução e rapto consensual, cometidos contra a filha de um endinheirado da cidade” (p. 19). Carlos Xibiu já tinha a fama de sedutor por ser neto de outro famoso do lugar, Didi Machado, que como nome já diz, era aquele que sabia abrir caminho ao encontro do mulherio.

O interessante neste conto é um outro encontro: o da moral cristã, representado pelo culto a São Sebastião, protetor contra os males da fome e da peste, o santo padroeiro da Ilha de Tijoca, e a moral das entidades, no caso, a Mulher Cheirosa, a que resolveu se manifestar justamente no dia de festa do santo e punir o sedutor com uma peia, deixando-o mundiado e em sono profundo por três dias sobre o lamaçal de um mangal.

 

VENTO ENCANTADO

 

O segundo conto da obra, O vento Encantado, nos faz recordar até de uma recente ventania que ocorreu na capital paraense, derrubando várias mangueiras e causando muitos destelhamentos e prejuízos aos moradores e à arquidiocese da cidade – tudo isso poderia ser evitado pelo simples fato de se benzer três vezes, persignando-se.

Essa lufada encantada, o arroto da Cobra Grande, ou como os caboclos falam,  o sopro de Anhangá, o espírito maligno que habita as matas dos mangues amazônidas.

A entidade desta vez é o seu Pena Verde, o pai da floresta, um encantado (aqueles que não morreram) que incorporou no Pai Vicente, o mesmo personagem do conto anterior, a fim de sarar o marido de Genoveva, o Osmarino que procurava o curandeiro pois ficara mundiado pelo Vento Encantado, que segundo dizem é uma legião de espíritos da floresta transformada em vento.

E o encantado Pena Verde, no corpo de Pai Vicente, aplica repentinamente uma violenta mordida às costas do enfermo curando-o na hora, retirando do mundiado uma cabeça de aracapurí, peixe usado em feitiços de quimbanda.

 

SORRISO-DE-MARIA

 

O terceiro conto é sobre a Sorriso-de-Maria, uma flor secundária diante da nobreza da rosa, flor do campo, usada em decorações, e que está, curiosamente presente na alegria e na tristeza.

É um conto que pode servir muito ao entendimento da maçonaria, afinal ser maçom é ser um decifrador dos mistérios e os símbolos são carregados de mistérios. Neste conto entendemos que a Amazônia é uma escola de iniciados, lugar para decifradores da linguagem sagrada.

Só é iniciado, nesse contexto amazônico, quem decifra a flor como um símbolo superior, afinal, são as flores que dão o sentido de que somos frágeis e fortes ao mesmo tempo quando evocamos a espiritualidade delas, basta lembrar que uma das ordens mais famosas é a Rosa-cruz.

Mas a Amazônia é lugar de gente como o personagem do conto, o seu Joãozinho, pessoa humilde que plantava as flores não para vendê-las e sim para apreciar a formosura do colorido, do perfume e das pétalas.

Seu Joãozinho era o fornecedor de flores aos moradores, à Igreja de Santa Izabel da Hungria e aos pastores crentes também pela ocasião do Natal e como enfeites nas despedidas rumo ao cemitério.

Apensar da poesia das flores, o conto se dá em uma Belém do Pará marcada pela violência, como a do taxista dependurado morto em um pé de pequiá, contada pela Dona Constância, a mais antiga moradora da rua, a Passagem Napoleão Laureano, nome do médico que morreu combatendo a tuberculose. E lá vai seu Joãozinho adornar o féretro de Dona Constância, assim como de tantos outros, como Pedro Castanhal, afogado no Igarapé do Apeú.

A alegria de seu Joãozinho era atender as pessoas a qualquer hora, ciente que era para alegria, como na festa de cinquenta anos do seu Firmino, ou para tristeza, que como já foi dito aqui: a vida humana é uma fragilidade como as flores, fragilidade que levou a pobre Maria Elisa a tirar a própria vida por causa de um romance, proibido pelo pai, e mal resolvido, com um sujeito chamado “Louro”.

Não foi para atender a necessidade desse povo, dizia seu Joãozinho, mas não recusava atender a alegria ou a tristeza.

Pelo lado da tristeza, a Sorriso-de-Maria enfeitava o caixão de bebum Simeão Come Vidro que falava sozinho e previa a sua morte, ou Evaldo Cabeludo que cumpriu pena no presídio São José, por extorsão, tráfico, roubo e outras delinquências pesadas, homem mau que havia, entretanto, sido o primeiro aluno da classe na infância, e mandado erguer uma casa a um morador que via sua morada ir com a enxurrada típicas de Belém.

A amante de Evaldo Cabeludo chegou a importar flores da Europa, mas a mãe preferia as de seu Joãozinho.

Ironicamente ou no sentido mais esperançoso, o canto de despedida no velório do conhecido meliante, “o rei dos ladrões” era: “Junto ao trono de Deus preparado/ Há, cristão, um lugar para ti/ Há perfumes, há flores belas/ Há delícias profusas ali”.

E o interessante conto finaliza com uma profunda e oportuna reflexão a partir da fala do pastor que encomendava do corpo, citando, dentre outras questões, o livro das revelações, o Apocalipse, e o livro dos livros da fugacidade: o Eclesiastes.

 

TAMAR

 

É o nome do quarto conto da obra e é aquele caso de história que diz o seguinte: não alimente a onça e também não mexa com a floresta, ela tem dono. 

Trata-se de uma família que adotou um filhote de Jaguaretê, o senhor do mato, na língua indígena, aquele que devora tudo, exímio escalador de árvores, devorador de jacarés e sucuris.

Tamar é o nome da bela moça que ganha de presente o bichano que a vai depois matá-la por um descuido de alimentação. O nome da infeliz protagonista diz o seu destino de outra forma: a bíblica Tamar deu seguimento a linhagem de Davi - já a amazônica Tamar vai morrer jovem e deixa assim de perpetuar a linhagem do pai da menina, o velho Mané de  Cristo, morador de São Roberto, localidade próxima de Maracanã, no litoral paraense.

Ele se sentia culpado, uma vez que “[...] nunca acreditou na história de vingança dos encantados” (p. 47), que se lamentava continuamente sob o efeito de cachaça, e que costumava visitar a sepultura da filha do pequeno cemitério onde o único coveiro, Ocivaldo Cotó, o que havia perdido um braço à terçadada, e que conhecia a história de cada sepultado ali, inclusive a do homem que o deixara com um braço apenas (nisso que é peculiar à obra de Ivanildo Ferreira Alves – o que podemos chamar de o encontro dos opostos, ou ironia mesmo do destino, algo peculiar dos grandes mestres da arte de narrar).

Em todas as narrativas de Contos da Amazônia há alguma digressão, uma pausa a refletir peculiaridades de modos amazônicos de encarar a vida, o modo de como o amazônida reage a determinadas circunstâncias do destino humano, em especial do amazônida paraense da periferia de Belém, arruados próximos, e da marajoara Ilha de Tijuco  – e é isso que que faz dessa obra um lugar de destaque na literatura amazônica.

E a história de Tamar vai mais adiante: continua o tema da vingança das entidades, ou como eu chamaria: a vingança dos encantados, afinal o velho Mané de Cristo era colega de caça do exímio caçador Zé de Andrade, em um grupo que se perdera na floresta que só encontrou caminho de volta porque o chefe da expedição se ajoelhara no meio do mato e clamava pela intervenção de Nossa Senhora de Nazaré, o que foi atendido e sem manter o escrúpulo de quem se perdera no meio da mata, abateu três veados galheiros e outros animais.

Na canoa cheia de caça, o velho Mané de Cristo resolveu trazer um filhote de onça que encontrara na floresta desgarrada da mãe, e o motivo era que o filhotinho do selvagem felino tinha a mesma cor dos olhos de Tamar, sua filha.

O filhote virou a Dengosa e era bem tratada até que um dia a cuidadora, a velha Joana, adoecera de Malária e não pode alimentar a onça que sob o instinto da fome atacou a adolescente Tamar, a ferindo de morte.

O estranho é que quando Mané de Cristo empunhando a cartucheira para se vingar da filha não via mais o animal que por encanto desaparecia. “’Zé de Andrade’ afirma ter visto o animal entrando na mata, puxado por uma corda de embira, por um índio, que ele reconheceu como sendo o caboclo Pena-verde” (p.56).

Tamar haveria de morrer noutro dia, em Belém, no Hospital da Ordem Terceira.

É mais uma intrigante história de quem desafiou o supremo defensor das matas.

 

BIGORRILHO

 

É o quinto e último conto da obra. E versa sobre um fato que realmente teria acontecido na capital paraense à época do “tempo do Barata”, conhecido pela rigidez com o sistema penal, e uma das suas prisões famosas era o Educandário Nogueira de Farias, na ilha de Cotijuba, colônia penal, a trinta minutos de barco de Belém.

O Educandário de Cotijuba lembrava a famosa Alcatraz americana e os 40 metros de profundidade da baía do Guajará impedia qualquer fuga, o que não quer dizer que elas não ocorriam.

A história de Bigorrilho, personagem citado também no primeiro conto do livro, lembrado como bandido perigoso e famoso das páginas policiais, é a de quem tem a liberdade de praticar uma vingança, uma vez que seu colega de cela, o Davi Pereba, “o preso mais antigo do estabelecimento correcional” (p. 62), ficou sabendo que sua única filha havia sido violada e engravidara do patrão que a contratara para serviços domésticos.

O velho detento, não suportando mais uma injustiça uma vez que assim acreditava que estava preso por ter defendido sua vida em uma disputa por mulher, cometia assim suicídio, deixando um bilhete explicando que, doente, não teria como se vingar do homem que desgraçou a filha.

Bigorrilho, que no popular significa indivíduo desprezível, indivíduo fraco e metido a valentão, quando consegue sua liberdade, só pensa em vingar o infeliz colega de cela, - e o conto nos leva a pensar que o ex-detento haveria de fazer justiça.

Entretanto, quando o Marta Conceição atracou na escadinha do Ver-o-Peso, Bigorrilho foi o primeiro a saltar e haveria de se embrenhar pela Cidade das Mangueiras à procura das mulheres que marcaram sua vida, jovens, para saciar-lhes o desejo e a idosa Dona Cheirosa, sua madrinha, para ouvir, entre os pregões de ervas, chás e banhos milagrosos a sentença “só é infeliz quem quer, quem não procura o remédio para seus males” (p.70).

Bigorrilho prefere não vingar.

Tem mais?

Tem sim.

Recomendo o livro.

Leiam. Compartilhem. Divulguem.



 

Belém PA, 23 de Agosto de 2023

 

Benilton Lobato Cruz





Capa e contracapa da 1ª edição, 2021.








 

 

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