VAMOS FALAR DE AMIZADE?
Morei perto da casa do professor Benedito Nunes, em Belém do Pará, eu na 25 de Setembro, atual Rômulo Maiorana; ele na Travessa da Estrella que já foi Travessa Mariz e Barros e voltou a ser Travessa da Estrella.
E um dia travamos uma conversa meio que ao acaso:
ele costumava caminhar de manhã, bem cedo, com uma cachorrinha que ele salvou
de um atropelamento (e foi capa até do Jornal do Brasil, dizia ele com um misto
de orgulho e admiração pelos peludinhos de quatro patas).
Eu voltava da natação, frequentava as aulas e
treinos da Escola Superior de Educação Física do Pará e ele retornava da sua
quase que, kantianamente falando matinal caminhada, pois era certa a sua saída
por volta das seis da manhã, como Immanuel Kant em seus passeios na prussiana
Königsberg a ponto de, dizem, a pessoas ajustarem seus relógios com o salutar
hábito do filósofo alemão.
Foram tantas as coincidências que acabei perdendo a
vergonha e me apresentei a ele, me identificando como leitor de seus ensaios -
aliás entre nós - que tessitura de pensamento, um misto de crônica do filósofo
que ele se recusava a ser chamado e mais um discípulo de Michel de Montaigne na
arte do ensaio, texto onde a escrita ganha a liberdade de pensar.
Esqueci de dizer que ele colocou uma placa no muro de sua casa, tomado de ervas trepadeiras bem cuidadas com as letras garrafais TRAVESSA DA ESTRELLA, uma vez que ele se recusava a aceitar o nome municipal de "Mariz e Barros".
E não foi só ele, todo mundo e mais o universo poético inteiro se rebelou para deixar a Estrella com dois ll na Terra. Mariz e Barros foi um tenente carioca da marinha brasileira que havia
morrido na Guerra do Paraguai (os nomes das ruas do Bairro do Marco e da
Pedreira rememoram as guerras do Brasil contra o general Solano e também a
participação da Polícia Militar paraense na Guerra de Canudos).
Por sua vez, Benedito Nunes mantinha o nome dado
pelos moradores do Bairro do Marco que haveria de ser Estrella. Na verdade, por ter morado nesse bairro, ouvia dizer que o nome de uma moradora da rua, a Dona
Estela. E ninguém queria o tenente e sim a rua da Estela que viria a ser Travessa da Estrella.
Bem, não tenho como comprovar isso, só sei que é um
dos nomes de ruas mais poéticos de Belém. E assim ficou até hoje, aliás
isso parece ser característica de Belém do Pará, cidade que tem muitas das ruas com dois nomes que eu nem vou citar aqui senão acaba a minha crônica.
Uma vez levei um presente para Benedito Nunes, uma colagem minha: era um quadro com o poema "Romance", do Mário Faustino, escrito com a minha caligrafia pautada no branco sobre uma folha de papel A4 tendo acima a imagem de uma cruz com uma proteção contra a chuva.
Era
uma bela fotografia que eu havia recortado de um jornal alemão, na época a Casa
de Estudos Germânicos da UFPA doava de seu acervo jornais e revistas da
Alemanha aos seus alunos do tedesco idioma). Fiz essa montagem em preto e
branco, com respingos de tinta do expressivo nanquim. E meu "vizinho"
erudito gostou muito.
Eu havia aprendido a fazer colagem com outro amigo
de Benedito Nunes, que morava no conjunto IAPI, em São Brás, e costumava
visitar o poeta a fim de expressar minha admiração pela sua poesia-colagem como
depois iria realmente identificar uma poética sui generis de Max. E o poeta me
presenteava com cópias de seus poemas-colagens toda vez que eu o visitava.
E foi que um belo dia flagrei o Max Martins à porta
da casa de Benedito Nunes, naturalmente aproveitei a ocasião para registrar
esse momento com algumas palavras de orgulho pela cena inusitada. Imaginem
vocês a conversa entre os dois, Max bem mais lacônico e Benedito Nunes sempre a
falar de livros. Vi nas mãos de Max, um exemplar das obras poéticas de António
Machado, que ele admirava muito.
Sim, o presente que levei a ele estava emoldurado. E ele
me disse que colocou bem à frente, em sua escrivaninha, o que foi uma surpresa
e uma honra para mim.
E passados os dias, fui lá em sua residência -
para, simplesmente conversar sobre poesia, coisa que gostava de fazer quando
soube que eu era poeta - e para a minha surpresa, estava lá o presente, sobre a
meseta dele, entre retratos de filósofos e um quadro do bigodudo Nietzsche,
talvez em seus delírios zarathustriano.
A amizade é um bom tema em qualquer circunstância
da vida, na literatura é o caso de Hamlet e Horácio, de Quixote e Sancho,
Robinson Crusoé e Sexta-feira, Sherlock Homes e o caro Dr. Watson, Riobaldo e
Diadorim, Narizinho e sua boneca de pano Emília, dentre outros pares que a
humanidade literária conhece. Na
amizade, há sempre a partilha da justiça, de intimidade, de sonhos, de pequenos
tesouros que só a um amigo é possível partilhar.
A amizade é uma forma de negar a morte como haveria
de ser entendida, por alguns, a etimologia da palavra amor, a= negar,
mor=morte, da mesma raiz da palavra amizade.
Benedito Nunes dizia que Mário Faustino era muito
brincalhão, e quando começava a recitar dizia"- Spot on me, Spot on
me!" no inglês aperfeiçoado no Pommona College nos EUA, onde estudara por
dois anos, Teoria Literária, como bolsista. Na verdade, Benedito Nunes lembrava
de como Mário Faustino amava o teatro, a poesia e a literatura de língua
inglesa.
Nesse dia, lembro de Benedito Nunes falar de Robert
Stock, um poeta americano, de uma rica família, e que largara tudo e viria a
morar na Ilha do Bananal, no Xingu, só que, talvez por amor, acabou ficando em
Belém, conhecera uma paraense e com ela morava no Bairro da Matinha, atual
Bairro de Fátima, em uma cabana literalmente que nem assoalho tinha.
Bob Stock trazia uma mala, usava poucas roupas e só tinha uma calça, e um macaquinho. Desmarcava encontros quando lavava esta sua única
calça. Foi o primeiro caso de desbunde poético conhecido entre nós, um caso que
mais tarde haveria de ter algo em comum com o Festival de Woodstock e
principalmente com a Beat Generation, a maior vanguarda poética criada nos
Estados Unidos.
A Beat Generation queria conhecer a batida dos tambores do coração musical das culturas originárias, aquelas menos afetadas pelos valores ocidentais, menos atingidas pela civilização industrial.
Assim, então, os poetas
cruzavam de Leste a Oeste em busca da poesia atrelada à natureza e às
raízes espirituais, rejeitando o materialismo. Nomes como Burroughs, Ginsberg,
Kerouac, Snyder, corriam, ou melhor, andarilhavam e influenciavam a juventude
americana e a de outros países a ponto de os Beatles, dizem, terem o nome também inspirado na
Beat Generation.
E isso, de certa forma, estava acontecendo em
Belém. Foi com a amizade com Bob Stock que Max Martins largou a poesia
recitada para a poesia da estética da página, ou seja, de uma poética mais
visual, antideclamatória (fato que eu explico no meu livro Moços & Poetas,
quando falo da juventude de quatro grandes poetas que aqui viveram).
E quando falo de amizade, eu invoco aqui a memória
desses nomes que citei nesta crônica: Bendito Nunes, Max Martins, Mário
Faustino e Bob Stock, amigos que fizeram da amizade nãos apenas um belo tema
para a literatura e sim uma fonte de onde podemos extrair peças e montar o
quebra-cabeças da história da poesia em Belém do Pará.
Mário Faustino morreu aos 32 anos em um
acidente aéreo próximo a Lima, a capital Peruana e Bob Stock ao saber da
tragédia, já de volta aos Estados Unidos, praticamente intimado pela família ao
vê-lo em estado de deliberada penúria, algo da filosofia do "Poeta da
Matinha", como ficaria conhecido à época, como um hippie avant la lettre
como se diz em francês.
Bob escreveria um poema hermético em memória a
Mário Faustino chamado "The Poet descends to the Hades" em uma meia
página de um jornal americano.
Benedito Nunes escreveria um dos ensaios mais
importantes da poesia paraense como apresentação do livro Não Para Consolar, de
Max Martins. Assim como ajudou e muito a divulgar a obra do poeta piauiense que
morou em Belém, Rio de Janeiro, Claremont (EUA), e morreu às proximidades de
Lima, no Peru.
Benedito Nunes, que também era muito amigo de
Haroldo Maranhão, morreu, em 2011, sua esposa, Maria Sylvia Nunes, que haveria
de tecer amizade com João Cabral de Melo Neto, presenciou todas essas transformações
estéticas e muito contribuiu para a História do Teatro quando encenou em Belém,
pela primeira vez, Morte e Vida Severina, partia em 2020.
Poderíamos dizer que todos esses nomes elencados
nesta crônica fazem parte de um legado cultural único. Foi uma geração marcada
justamente por esse tipo de amor nutrido, pela poesia, filosofia, teatro,
docência, aventura, - vida - acima de tudo marcada pela amizade a que é
fundamental para a existência humana suspirar sua arte, sua leveza, seus
encontros, suas dores, suas esperanças sob algum brilho de uma Estrella.
Benilton Cruz
Benilton Cruz - Doutor em Teoria
e História Literária, professor da UFRA, Cursos de Letras-Português e
Letras-Libras, professor de Alemão, pós-graduado pela Universidade de Freiburg
im Breisgau, na Alemanha, autor dos seguintes livros: Olhar, verbo expressionista
– O Expressionismo Alemão no romance “Amar, verbo intransitivo de Mário de
Andrade, 2013, Paco Editorial SP; Moços & Poetas – Quatro Poetas na
Amazônia - Ensaios Sobre Antônio Tavernard, Paulo Plínio Abreu, Mario Faustino
e Max Martins, 2016, Paco Editorial SP; Espólios para uma Poética – Lusitanias
Modernistas em Mário de Andrade. 2016, Paco Editorial SP; Aurora que Vence os
Tigres. Poesia, Editora: Rumos, 1996, Belém-PA, (esgotado), poemas selecionados
em diversas antologias poéticas; 17 artigos publicados no Brasil e no exterior
em revistas especializadas na sua área de atuação como pesquisador de
literatura. Editor do blog: AMAZÔNIA DO BEN, sobre a Etnopoesia da região
amazônica-paraense, autores paraenses, cultura amazônica & outros temas.
Editor do Canal de Poemas No Meio do Teu Coração Há um Rio, no Youtube. Membro
da Academia Maçônica de Letras do Estado do Pará, AMALEP, ocupando a cadeira nº
11, patronímica de Mário de Andrade, cargo de Diretor Secretário; Perito
Forense pelo Instituto de Perícias de São Paulo e membro eleito à Academia
Paraense de Letras.
(Na foto, Benedito Nunes e o poeta Mário Faistino)
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