Para
Orfeu, cantar é existir, “Gesang ist dasein” (1984) como diz um dos sonetos de Rilke
ao mítico poeta da Trácia que cantava junto às árvores como os pássaros e ali
cercado da natureza haveria de inventar algo fascinante até então para a arte
do canto, algo de sua primeira condição de fragilidade e de desesperança.
O canto
é algo consciente de anular a morte. A renúncia órfica caracteriza-se justamente
por esta crença de que cantar não é cobiçar algo, e sim, dentre outras coisas,
simplesmente, também escutar.
A
verdadeira árvore está no ouvido, “a grande árvore”, e desta forma, Orfeu criou
uma espécie de “Templo” não físico, um templo sinônimo da relação cantar e
ouvir. É o ouvir a ação básica do orfismo em sua natureza poética.
Rilke,
poeta que viveu a mesma época do filósofo Heidegger, cuja filosofia pregava,
dentre outras coisas, que a poesia é o fundamento que suporta a história, e
acreditava que o poeta era o “arauto permanente” (bleibenden Boten”).
Uma
observação: a palavra medieval “arauto” nem sempre pode ser traduzida pela
moderna “mensageiro” devido aos riscos daqueles cavaleiros, mediadores de
conflitos diante dos campos de batalha.
Mediadores
de conflito. O arauto aqui é entendido como aquele que festeja na escuridão de
um tempo de penúria a unidade, a permanência do ser. Para Rilke, a suprema
realidade está no poema e todo poeta é apenas um servidor, um arauto, aquele
que anuncia esse mesmo poema por vir.
A
poesia seria o “vinho inesgotável” para os homens, pois tudo conflui para ela.
O poeta austríaco, na verdade, tcheco-suíço-francês-alemão, dizia que “tudo se
faz uva, tudo se faz vinha” e por celebrar esses dois mundos ( na síntese de
vida e a morte) a poesia não pode ser mentirosa, daí que foi a única arte
consentida no Hades, o reino do “invisível”, segundo o Crátilo de Platão.
Daqueles ainda tocados pela possessão divina de uma voz em trânsito com o
divino, todos os outros podem se calar, menos o poeta que como um arauto
permanente, mesmo além das portas dos mortos assegura as “salvas” com frutos de
celebração.
A
poesia celebra a unidade do ser e o poeta é seu mediador. Não haveria de ser
diferente para quem conta ou narra uma história. Contar é existir.
O Barco
e o Mito
Paulo
Plínio Abreu
Barco
de madeira construído no ar para a viagem do mito.
Nau
feita de vento
E força
de um pensar antigo.
Tua
quilha tem o sabor do sal das águas fundas
E de um
peixe que atravessou a garganta de um morto
Na tua
vela tracei o emblema da rota
Que um
dia imaginei olhando a Grande Ursa
Nos
caminhos da noite. Nau sem porto,
As
águas te seduzem e contigo me arrastam,
Barco
feito de mito,
Construído
no espaço
Com a
matéria das nuvens.
Nau feita
com o bico de uma ave
E um
desejo de fuga.
Nau que
a ti mesma te armaste
Do nada
que podemos
Nave do
nada feita e quase ave
Desfeita
em voo puro e quase mito
Para o
poeta Paulo Plínio Abreu o mito é a viagem, o barco, a quilha, a peça única de
madeira que sustenta a estrutura de toda a embarcação. Essa “força de um pensar
antigo” revela a forma duradoura do ser – instigadora de filosofias e de poesia.
REFERÊNCIAS
ABREU, Paulo Plínio. Poesia. Prefácio, notícias e notas de Francisco Paulo Mendes, 2ª Edição. Belém : EDUFPA, 2008.
BERMUDES-CAÑETE, F. Rilke. Barcelona: Jucar, 1984.
Orfeu e Eurídice
Rilke
Paulo Plínio Abreu - pelo pintor peruano Cesar Calvo.
Benilton Cruz
04.02.2021
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