Benilton Cruz
Paulo Plínio Abreu, nascido em Belém a 19 de
junho de 1921 e morto devido a uma nefrite crônica aos 38 anos de idade em 5 de
setembro de 1959, tem apenas um livro, Poesia (1978), publicado postumamente sob os cuidados do professor Francisco de
Paulo Mendes através da Universidade Federal do Pará[1].
A obra ganhou uma segunda edição, revisada e ampliada, pois muitas eram as
gralhas na edição prínceps. A reedição confirma a poética de Paulo Plínio Abreu
em um momento especial de sua recepção.
O presente artigo investiga a poesia pliniana como leituras de Rilke e do mito de Orfeu. Até onde há
semelhanças e diferenças entre o poeta austríaco e o paraense, uma vez que
ambos tocam em assuntos da natureza mística da palavra. A priori, estabelecemos
uma importante distinção: para Rilke, havia a possibilidade de um mundo coeso e
unificado pela palavra poética, ao passo que para Paulo Plínio Abreu não existe
tal unificação. O poeta é o do desencanto e contrário ao sentido agregador de
Orfeu.
Segundo Rilke, os poetas teriam uma
“consciência divinizada”, e diante da noção de um “Deus inacabado”, “cabe ao
poeta lírico completar com a palavra poética[2]”
um mundo verbal ainda em construção. A poesia seria reduto natural da força
mística, teológica e aglutinadora. O tema do “anjo”, por exemplo, termo
substituto da palavra “Deus”, vai ser retomado pelo poeta paraense como a
aquisição mais lembrada das Elegias de
Duíno.
Rilke é o poeta de língua alemã mais
influente do século XX, e seu romance “Os cadernos de Malte Laurids Brigge” condensa
a sua poética: o olhar é um importante guia na metrópole tomada de violência e
morte. Para o poeta nascido em Praga, mas austríaco por adoção, “tudo é
indizível[3]”
e a “suprema realidade está no poema”, portanto, “o poeta se dedica a expressão
do invisível através do visível[4]”.
Daí o misticismo e o tom anímico de sua poesia inevitavelmente elegíaca, “transparente”,
metafísica, espiritual.
A elegia, apesar de conter características
plangentes, seria a melhor forma dessa expressão, justamente por concretizar a
forma poética adequada a tocar o reino espiritual. Esse comportamento de
lamento já era percebido pelos antigos: Aristóteles, por exemplo, em sua Poética não conseguia “encaixar” a
elegia ao gênero épico, por ser um tipo de poesia apegada ao mundo metafísico
e, consequentemente, à palavra em sua natureza metapoética.
O comportamento espiritual da poesia é
notório aos filósofos. Para Hegel, a poesia seria a mais completa e espiritual
das artes, porque, dentre outras coisas, nutrida por imagens, o que lembra a
artes plásticas, e, pelo ritmo, derivada da música, seria a combinação adequada
a abrir caminho à interioridade espiritual.
Rilke,
como poeta místico, perscrutador do invisível, cultivador excêntrico dessa
moderna linha espiritualista, ousado em suas metáforas, redimensionando a
crença do poético transcendental, instigador de natureza divina da poesia,
discípulo do “deus-cantor” da Trácia, não seria aquele que ajusta a Estética
hegelliana à tradição órfica?
A
resposta seria uma longa pesquisa. Poderíamos resumir que a totalidade da
poesia rilkeana inclui a soma da “matéria” verbal, a palavra, e da metafísica,
os temas do reino espiritual. Assim, não só a obra do autor dos Sonetos a Orfeu, mas a poesia como um
todo é arte próxima da filosofia, justamente, porque a arte poética deixa
transparecer uma expressão que se “forma”, nutrindo-se da língua, da arte, da
religião e do próprio processo formador da filosofia presente na linguagem.
Assim
sendo, essa procura do ser poético recebe o nome de metapoesia. Porém, este
misto de poesia e filosofia pode se tornar dramática à medida que aprofunda o
ser na sua verdade e na sua expressão, como é o caso da poesia em sua natureza
ficcional, mítica, filosófica, religiosa, ou seja, em sua natureza metafísica.
A metapoesia “fala” a linguagem da criação poética, e resume o momento
histórico no qual a atividade com esse tipo de poesia se identifica e se
intensifica.
No
Pará, tivemos um discípulo “rebelde” de Rilke. A poesia de Paulo Plínio Abreu
consegue “questionar” a integridade da linguagem como um “sinal” e permite
rever o homem como “ser” de linguagem. É o caso do poeta que assinala um mundo
destituído de unidade, restando à poesia um espaço de exílio e reflexão, a que
busca sua autonomia diante da possível recuperação da totalidade perdida. Para
Paulo Plínio Abreu a poesia é o que resta de um todo dilacerado. Ela é a
“salsugem”, o lodo salgado depositado no fundo do porão dos navios como
metáfora da travessia pela existência.
A
primeira refutação pliniana ante a possibilidade de reunião divina pela palavra
está no próprio conceito: poesia é “dádiva inútil” (“Envoi”), ou como “símbolos
estranhos” (“Nascimento de um poeta”). As limitações e os enigmas compõem o
acuado mundo do poeta. Isso não quer dizer que Paulo Plínio Abreu não comungue
com Rilke temas em comum. Os anjos, por exemplo, como “puros” substitutos da
beleza, são imagens de uma mesma tradição, assim como as noites “longas”,
exatamente a da “grande noite triste” (“Elegia em 1941”), o abismo formador que
precede a Criação nas Elegias rilkeanas.
Porém, o que nos chama a atenção no poeta
paraense é que anjo e língua são, diríamos, “transparentes", ambos não
dizem, mas revelam “algo”, que, na essência, seria indizível ou invisível – e o
mais importante: o poeta vive o indisfarçável drama do sentir-se só diante de
tudo isso. A visibilidade da palavra em sua totalidade não é concreta. Ela é
apenas um sinal ou mito.
Toda a trajetória poética de Paulo Plínio
Abreu lembra a aventura órfica de recompor esse enigma. O poeta será
literalmente aquele que “não foi senão espanto/ mas quem tua beleza bebeu e
embriagou-se/ num porto dessa Tróia incendiada” (“Recomposição do enigma”). Foi
alguém que se deixou seduzir e se perdeu diante da beleza como o início do
terrível, exatamente, como lembra a primeira elegia de Rilke.
Um de seus poemas, “Tudo é sinal e mito”,
provavelmente escrito por volta de 1958, quando o poeta preparava uma coletânea
que seria denominada simplesmente de “Poemas[5]”,
reflete algo peculiar ao poeta austríaco: o reconhecimento da linguagem como
instância incompleta, restolho do inútil, falácia do sujo, algo também da
poética de Max Martins, “recolho o que perderam/ as aves no seu vôo,/ o que os
peixes trouxeram,/ o que as águas à praia/ lançaram inultimente:/ o resto da
salsugem” (“Envoi”).
Tudo seria na palavra um emblema dos perigos,
ou o “exagero” ou a inconsequência do mito, ou a própria fugacidade de tal
linguagem, expressa na simbologia frágil da rosa. Tudo pode ser sinal, mito ou
sonho. Equívocos, rastros, pegadas, zunir de insetos, formas de nuvens, sob um
tempo implacável, mas de certa forma, algo tocado de visibilidade, do “ermo
precário” (“Tudo é sinal e mito”), o permanente predizer.
A “advertência” da vida nessa “incerta
passagem”, “na linguagem do nada que se apaga”, é viver isolado, nutrindo-se da
estranha “seiva” do luar, a que “secreta a rosa dessa hora”, o típico desejo de
“presentificar” o momento. Estamos diante de dois símbolos preciosos da poesia
lírica: a lua e a rosa. A lua, símbolo da solidão; e, a rosa, símbolo do amor,
da juventude e do transitório.
O mito, uma das mais complexas criações da
linguagem humana, a que se alonga duradoura diante da frágil poesia, revela seu
poder de permanência. O mito fica; a poesia se fragmenta. O drama da metapoesia
foi detectado por Hegel, para ele a poesia, por se expressar por palavras,
teria diante de si, um campo infinitamente mais vasto que as demais artes.
Diante desse infinito, diríamos que cabe ao mito
ter uma realidade diferente: por ser o discurso da origem das coisas, como a
linguagem poética, o mito perdura como uma “quilha” a suportar as ondas da
travessia temporal, como diria literalmente o poeta: “Barco de madeira
construído no ar para a viagem do mito” (“O barco e o mito”).
A fala mítica contrapõe-se ao delicado poema.
E aí a angústia do poeta: como caber no verso o material perecível, sonoro e
frágil, que é a palavra ou mesmo o poema.
O mito aparece como a forma mais resistente,
atua não apenas como linguagem onírica necessária à criação, mas como “força de
um pensar antigo” (“O barco e o mito”), exatamente como uma viagem
trans-temporal, “viagem” na vastidão do “grande mar” (“Poema do Exílio”),
reescrevendo um “tempo imemorial” (“Elegia”) e, novamente, concretiza a
“segura” linguagem sobre o sinal, “o remoto acalanto” (“Tudo é sinal e mito”),
o poema.
O poeta é aquele que detém a “esperança dos
mundos impossíveis” (“O comedor de fogo”) ou aquele que se sentido fragmentado
encontra forças como crença no futuro, revelando a multiplicidade moderna “hoje
repartido/ em fragmentos de amor na púrpura da tarde,/ reconhecido em múltiplos
cantares,/ ou nas ardências de um postremo dia” (“Soneto”). Ser poeta é
depositar “sua mensagem às gerações futuras” (“Nascimento de um poeta”).
Todavia, o poema, por sua vez, seria “sinal
equívoco”, algo como o inábil percurso, e prediz, como um símbolo em ruínas. O
trabalho fundamental do peota é assegurar um porto a essa linguagem
predestinada ao fracasso, à solidão e à morte. Seria o “caracol/ [que] esculpe/
sua incerta linguagem [...] do nada que se apaga” (“Tudo é sinal e mito”).
O poema é o rastilho a unificar este mundo
que não tem “lugar” seguro (“Poema primitivo”) para esconder o sonho, o
verdadeiro lugar dos homens. Esse reino é a poesia, e nele o tempo se confunde,
como o recinto que não é dos homens, mas de uma estranha “chama”, o “amor tão
puro” (“Poema primitivo”). E diante da fragmentação iminente, Paulo Plínio
Abreu escolhe os seguintes versos de Rilke como epígrafe: “Der Dichter einzig
hat die Welt geeinigt/ die weit in jedem auseinanderfältt[6]”,
ou seja, “O singular poeta unificou o mundo/ que segue despedaçando-se“, escrito
em 1921, provavelmente, no castelo de Muzot.
Rilke, por essa época, não voltaria mais à
Áustria, desde 1919 decidira “exilar-se” na Suíça, assim como mais tarde
Hermann Hesse iria fazer. O mundo em guerra não seria mais tolerável ao poeta.
O “asilo” tem mais a ver com o reconhecimento de seus admiradores. O pretexto
era dar leituras públicas de sua obra, mas a razão mesmo era buscar um lugar
comparável ao Castelo de Duíno, para assim concluir as Elegias.
Interessante que o tema do polichinelo, visíveis
no Futurismo, o do espantalho, o do saltimbanco e o da boneca voltam a aparecer
na poesia pliniana ao lado da leitura do mito de Orfeu. Especificamente o
saltimbanco e a boneca que derivam das Elegias de Duíno. Esses motivos denotam
uma leitura ganhando forma entre a influência de Rilke e o tema do exotismo do
circo, este em particular, como as vanguardas defendiam diante do tumultuado
urbano.
Nas vezes em que o poeta se refere ao
polichinelo, há evidências dos traços físicos de Orfeu e da mesma condição da
linguagem humana, frágil e ironicamente, quase que ela mesma um “polichinelo”,
personagem da comédia italiana, falsamente heróico, e, na verdade, fanfarrão.
O polichinelo não possui essas
características do herói burlesco. Ao contrário, tem boca vermelha, humor
profundo, amargo e doloroso e de coração ausente, quase uma auto-identificação
do poeta com a figura mítica de Orfeu.
O POLICHINELO
O seu segredo era como o dos outros.
Seus olhos eram de vidro azul
e na boca vermelha
o riso da ironia.
O humor profundo, amargo e doloroso
vinha de sua boca;
o riso da sabedoria
e do desespero
gritava da sua boca aberta em sangue.
O riso do polichinelo
vinha do coração ausente, era uma advertência.
Era apenas o riso
e falava de um mundo
maior que sua alma.
É o “autorretrato” do poeta, o de olhos “de
vidro azul”, como os dos habitantes da lendária Trácia, na boca o riso da
ironia, o humor profundo, amargo e doloroso, sábio e desesperado. Seu riso era
a advertência, como destino da palavra em “Tudo é sinal e mito”: apenas um riso
cuja amplidão anímica supera qualquer mundo físico, rilkeanamente o poeta
“falava de um mundo maior que sua alma” (“O Polichinelo”).
O poeta moderno seria um “polichinelo”: um
quase “palhaço” que não serve para alegrar, (por isso o ”riso da sabedoria e do
desespero”), e, ironicamente, tanto mais espantalho quanto humano.
LEMBRANÇAS DE UM ESPANTALHO
Lembro-me que era um espantalho
e que balançava no ar
no caruncho da tarde o seu frágil corpo de plano
tanto mais terrível quanto mais humano
pois algo havia de humano
no ar da tarde ou no espantalho
que me lembro ter visto.
Era só um espantalho
agitado no ar pelo vento da tarde.
A chuva caía-lhe na cabeça grotesca.
Um verme subia no seu corpo
para roer-lhe a madeira.
E eu quis pousar no seu ombro
o meu cansaço de ave.
mas algo havia no seu ser
que me aterrou.
Um mundo de espanto, e por ser mais humano, não menos
decifrável sem algum sentido mais misterioso. O poeta assume a imagem
desprezível de “cabeça grotesca” relegado aos vermes. A irônica “coroação” de
seu esquecimento lembra a terrível revelação da beleza pela voz da Primeira
Elegia de Rilke, traduzida pelo próprio Paulo Plínio Abreu: “Pois o belo não é
senão o início do terrível”.
O poeta revive a magia de Orfeu: “E eu quis
pousar em seu ombro”, “mas algo havia no
seu ser/ que me aterrou”. No conto de Hans Baumann, o fantástico poeta da
Trácia aparecia de “olhos azuis” e sempre acompanhado: “Ela surgiu da árvore e
pousou no ombro de Orfeu quando ele retomou suas andanças, e não o deixou mais[7]”.
Esse pássaro “que não pertence a nenhuma fauna” (“Viagem ao sobrenatural”) é
imagem recorrente em Paulo Plínio Abreu.
A simbologia da pomba do mato refere-se à
aptidão do mítico poeta com o canto e a voz, dentro daquela virtude da qual
Marcel Detienne chamou de “virtude centrípeta[8]”,
quando a voz reúne todas as criaturas da terra, do céu e o mar, união plena com
a Natureza. O certo é que Orfeu, por essa força aglutinadora, foi fundamental
aos argonautas atingirem a Cólquida em busca do Velocino de Ouro.
Assim, queremos entender o poeta como aquele
que reúne. Aquele que atrai para si as criaturas, os animais, que podem ouvir e
cantar, sob as mais variadas formas, e essencialmente, aquele que recolhe os
fragmentos, aquele que une um mundo despedaçado, novamente algo lembrando a
epígrafe de Rilke de 1958.
Orfeu, em outro poema, é “emigrante” entre
reinos distantes, e revive a mais longa viagem, aquela que deixa no corpo as
marcas da perda e das complexas travessias. O estranho pássaro aparece
novamente, ou como a pomba do mato, ou como rouxinol, em sua última morada, em
outra versão do mito, quando as musas enterraram-no em um túmulo em Limetra.
Diz a lenda que o rouxinol cantou diferente desde então.
O
NÁUFRAGO TRAZIA UM PÁSSARO NO OMBRO
Sei
que trazia um pássaro no ombro.
De
um reino vinha carregado de sonhos
Na
mão trazia as marcas da viagem
Ainda
giravam em torno do seu corpo
os
ventos do mar.
No
olhar o horizonte carregado de bruma,
no
ouvido o pio das gaivotas.
Trazia
o mar no corpo,
as
medusas do mar.
No
peito trazia marcada em tatuagem
a
palavra amor.
Vinha
do mar e trazia um pássaro no ombro.
O mar é o “útero” da terra. É a simbologia
mais vasta da Criação, a jornada mais longa, representada na busca pelo Tosão
de Ouro à remota Cólquida. O lírico, assim, está atrelado ao épico, na viagem
dos argonautas, o filho de Apolo e de Calíope, como reza outra versão, tem a
função de acalmar os rochedos que esmagam as naus invasoras.
Orfeu “duplica” o sentido de mito, uma vez que esta
palavra seria como uma “palavra cantada”. O poeta coloca mais além o sentido de
canto: a voz, a canção, o corpo são suas “armas” diante do destino das longas travessias,
não só a da busca pelo Velocino de Ouro, mas a outra, ao país dos mortos.
A renúncia ao manejo das armas é outra dimensão, pois
indica que nem só de guerras vive a mitologia. O astuto músico reanimava os
argonautas e impingia desconfiança aos deuses. Quando o poeta retorna com
Eurídice da pátria dos mortos, a incerteza não era só porque os deuses troçavam
dos homens, e sim porque houve, também, um mortal “momento de esquecimento[9]” nesse fatídico instante em que saíam
do Hades.
O poeta é tocado pelas águas do Letes de
outra forma. É a constatação de que a arte não pode tudo, esta, sim uma ferida
de mortalidade: uma parte é divina e a outra é infernal. Um duplo habita o
poético: o amor e a perda sem esperança de retorno convivem lado a lado. A
própria história do lendário poeta já nos mostrava o grave empecilho de ser
enganado pelos deuses e de perder Eurídice duas vezes.
Por outro lado, o nome de Orfeu sempre
esteve associado ao verdadeiro criador da “teologia pagã”. O poeta oculta uma
tríplice identidade nessa relação: a Natureza, a Humanidade e o Céu. Teria sido
a poesia a língua dos deuses, a que Orfeu traduzira aos homens? É nesse sentido
que Rilke vai chamar o filho de Calíope de o “deus cantor” na obra Sonetos a Orfeu, de onde podemos ver o
mítico poeta como um instigador, antes de encará-lo como um deus ou uma
entidade mitológica. Orfeu é aquele que canta à proa de Argos.
O nome de Orfeu insinua também uma estreita
ligação com “órfão”, “orfandade”, “privação”. Uma das versões diz que era Filho
de Calíope com o rei Eagro. Ao poeta é atribuída a invenção da cítara ou que
ele teria aumentado o número das cordas de sete para nove, em homenagem às nove
Musas, já que sua mãe era uma delas, a mais importante: a Musa da poesia épica.
Por conta disso, sua estirpe tem um lado de
realeza e seu dom de seduzir somou-se à lenda de ser o primeiro poeta. O cantor
que amolecia as pedras e domesticava as feras, agregador da natureza, o que
recolhe o imperecível:
ORFEU
Com
palavras que hoje restam da infância
edificarei
meu reino
e
nele estrelas cairão de noite puras.
De
corações mais puros
tombarão
as águas em que os animais
virão
matar a sede
e
onde dois olhos, símbolos do amor,
o
caminho indiquem para a salvação.
Com
palavras inúteis e canções apenas
refaremos
o mundo
o
mundo sobre o qual
eterna
como a rosa morta pela chuva
a
poesia reine
e
viva sobre a terra.
A
palavra Orfeu significa também “aquele que cura pela luz”. Ao alegrar com seu
canto ou ao encantar, propriamente dito, o poeta-curandeiro, com sua voz,
restitui a saudável energia do conviver. O toque medicinal seria a aura menos
mística do órfico poeta. A duplicidade, então se lança: pela versão de Édouard
Schuré, seria o “médico das almas” e pelo estudo de Junito de Sousa Brandão, o
órfão-Orfeu seria um excluído, um exilado, um poeta-mensageiro do divino.
O
pesquisador brasileiro, especialista em mitologia grega e latina, por sua vez,
traduzia Orfeu como “privado de”, o “órfão”, para ser mais preciso. A questão
era a revelação dos segredos de Dionísios. Assim, o “vate-decifrador-dos-deuses”
concorre ao lado de “Prometeu” como outro a desafiar as divindades, acrescido
do poder de cura. O poeta era entendido como “salvador” das almas, teria algo
de Hermes, e seria responsável pela reconstituição do que havia de divino no
homem.
A
tarefa era recolher os estilhaços de um mundo sem unidade. Orfeu visitou os
três reinos, o “céu”, quando consegue a anuidade dos deuses, a terra, com seus
heróis, e o “inferno” (o Hades). O poeta carrega uma trindade que pode ser uma
em algum momento. De qualquer maneira era um iniciado, condição necessária ao
enigma, do segredo e do sagrado. Era quem recolhia as “cifras”, era o leitor do
invisível, como o Hades era conhecido, segundo Platão, nO Crátilo.
Orfeu
é o mais lírico dos mitos, e decifra o “céu” e o “inferno”. Todavia,
fragmenta-se por ser justamente o decifrador do invisível, ele não apenas conheceu
o profundo, como celebra a união de animais e deuses, como lembra os versos de
Tavernard “Minha vida/ é como taça de cristal partida/ em que beberam deuses e
animais” (Prece de Natal).
O
poeta é coroado no céu, na Terra e no Hades. Seu triunfo no “inferno”, das
águas letais, não seria por ter amolecido o coração do deus dos mortos, mas por
ser o único a lembrar que lá todas as pessoas esquecem seus nomes. É quem
possui memória no inferno.
Destarte,
a poesia para Paulo Plínio Abreu tenha algo desse “secreto espanto,/ este
secreto mel” (“Poema”), “estranho encanto”, “antanho desejo”, “frustrado
espasmo” (“Madrugadas de um estranho encanto”), “estranhas terras”, “velhos
desejos desaparecidos” (“Elegia”) algo sempre tocando novamente o que há de
“sinal” e de “advertência” nos objetos que despertam sua poesia sobre um “mundo
pressentido e oculto” (“Viagem ao sobrenatural”).
DIFÍCIL É DIZER-TE O QUE AMAMOS
Difícil é dizer-te o que amamos
Nessa furtiva espera gasta pelo tempo.
Há longos anos batemos à tua porta
E o teu nome esquecemos.
O medo está nas mãos onde o frio espera
Sangra e não choramos, apenas esperamos
Por um sinal que tarda
E um dia virá talvez, hoje ou amanhã.
Toda
a poética de Paulo Plínio Abreu atravessa esses versos: a consciência da
limitação pela qual toda linguagem possui. A verdadeira linguagem são apenas
sinais, mito ou sonho, ou espera do que pode ser dito, porque até “o teu nome
esquecemos”. A linguagem é limiar à espera do seu despertar.
A
sensorialidade era tema recorrente à época de Rilke, especificamente na poesia
simbolista. Rimbaud anunciava todas as vanguardas ao implodir a noção mais
clara dos sentidos, propondo o desregramento de todos eles. E, no Brasil, Cruz
e Sousa, descreve a natureza como se fosse um pintor em Missal, antecipando de certa maneira a idéia do “escritor artista”
defendida na Estética da Vida de
Graça Aranha. Além do mais, o poeta de Broquéis
instigava o verso harmônico bem antes da proposta de Mário de Andrade[10].
A
influência de Rilke é grande, mas Paulo Plínio soube colocar-se diante dela
como intérprete de seu tempo e de sua própria condição de poeta. Não há como
negar que o tom elegíaco da poesia rilkeana fascinara Paulo Plínio Abreu. O
“belo sinistro”, como disse Lya Luft, deixou uma influência duradoura na
literatura brasileira, e sua repercussão abrange uma área carente da verdadeira
investigação.
Mas,
todos os poetas, da década de 40 e 50 no Brasil, beberam nesta fonte como
Vinícius de Moraes e Geir Campos. Em um sentido mais geral, Rilke seria um
“gnóstico” no século XX. Seus poemas não deixam de ser um procura pelo Anjo, o
que não deixa de ser um “Deus”, principalmente em suas Elegias de Duíno, de 1923.
A palavra “Anjo” revigora-se a partir de
Rilke, porém, “chuva”, “mito”, “lua”, “mar”, dentre outras, são da ordem
poética eminentemente de Paulo Plínio Abreu. E o mais interessante: a luta do
poeta não é com o anjo e sim com a palavra:
ARTE POÉTICA
A luta do poeta não é
com o anjo
mas com o verbo,
que dissolve em poesia.
A metapoesia sela uma identificação histórica
com os poetas do século XX, especificamente aqueles voltados à natureza interna
do poema e sua condição de depurador da poesia. E não foram poucos: Octavio
paz, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Mário Faustino, Antônio
Tavernard, dentre muitos.
Outros temas como “viagem” ou a “viagem sem fim” (“Poema”),
“longas viagens” (“A chegada dos desconhecidos”), atestam a
proximidade com o mito de Orfeu em torno da jornada do lendário cantor. Porém,
o poeta paraense já anunciava sua reclusão em torno do que pode haver de
fantástico e metafísico no universo da palavra. E, assim, tal qual Antônio
Tavernard ou Mário Faustino, é a poesia que dissolve o indizível e o invisível
na luta agônica do poeta com o verbo.
A visibilidade do inominável continua: a
“pátria metafísica”, o “país do algures”, “estranha terra”, a “cidade obscura”,
a “outra pátria”, “país estranho”, “o desconhecido”, a “antiga pátria”, “o novo
país”, “pátria esquecida”, “reino”, “país desconhecido”, a “outra Babilônia”,
“o natal país para onde voltas”, o “desconhecido”, a “obscura fonte”, nomes
mais evidentes nos poemas “Variações sobre o filho pródigo”, “Noyau” “Arte
Poética” e no “A viagem para o novo país”, onde “poderemos caminhar como
crianças sobre a relva fria”.
Tais lugares metafísicos se misturam com a
mística da “rosa”, motivos também encontrados na tradição da poesia alemã, a
que passa por Ângelus Silesius e a filosofia de Mestre Eckhart até chegar
novamente em Rainer Maria Rilke e sua peremptória acolha pelo místico. Todavia,
em Paulo Plínio Abreu há sempre algo apontando à queda, contrariando os
princípios do autor do Livro das Imagens.
O “resto da salsugem” aparece como emblema do que sobrou da breve existência ou
da longa travessia da vida.
Assim, o luto e a tristeza dominam seres e
coisas porque “as chaves do mundo” estão “para sempre perdidas”, (“O tema da
rosa”). O poeta carrega a tarefa de “celebrar a inutilidade”, (“Passos que
acordarão os amigos mortos”) ou recolher “esta secreta seiva/ que brota, como
se fosse mel, neste ermo precário.” (“Poema”), por via de um trabalho que se
autodefine como “uma dádiva inútil” (“Envoi”). Não há sossego nessa “busca da
palavra/ que possa reduzir-te/ o sonho, ou recobrar-te/ a essência perdida” (“A
escolha das palavras”).
Ao final de seu livro, Paulo Plínio Abreu via
o poeta como um mistificador, vivendo de uma “fonte invisível” (“Ode em forma
de prosa”), ao mesmo tempo em que lhe assegurava um caminho ligados às questões
internas da poesia. A forma poética preferida de Paulo Plínio Abreu fora,
portanto, a elegia, a composição poética que (inevitavelmente) retrata não só a
perda do amor ou da pátria, no sentido aqui, mais metafísico, mas a perda da
palavra como o referente substancial com o mundo.
Uma característica mais especificamente
relacionada à cidade de Belém é o tema da chuva como elemento agregador. No
verso “Era Natal e chovia entre os homens”, do poema “Rosa que secretas o
mundo”, há a noção da chuva como a natural esperança por um mundo a ser
refeito: “Ainda trazia nas mãos o frio dos troncos úmidos da noite,/ e nos
olhos a humildade da terra encharcada de chuva.” (“A estranha mensagem”).
Na tradição ocidental, a elegia não deixou de
favorecer a uma “oratória” dos sentimentos a “dissertar” sobre os infortúnios
da solidão (o tema do mar e o da lua, por exemplo), ou o de reclamar o que foi dissolvido
para sempre no amor. A elegia ganha novo sentido ao abordar esse vazio no
espaço reservado à palavra, algo predestinado já desde os antigos. Para os
gregos, a elegia tinha a importante função de suportar os ciclos do destino,
era o poema que dissecava, espiritualmente, a inexorabilidade implacável da
sorte.
A elegia era acompanhada de uma solitária
flauta, e tornou-se, com o tempo, marca de nossa impotência diante da morte. Ao
perder sua musicalidade, firmou-se um caso lírico à parte: denuncia o tormento
espiritual das épocas. A elegia seria a forma adequada a refletir o fim, e,
diante das ânsias da metanarrativa e da metapoesia, por que não, reconhecer a
condição vulnerável da palavra. É o caso do poema “Rosa que secretas o mundo”:
“Canta-me pássaro morto a tua alma/ Mais viva que teu canto, mais sabida/ que
cântico morno da inutilidade”.
É um Anti-Orfeu que se revela mais frágil que
seu mundo secreto. Sua elegia desnuda seu cosmo que se fragmenta, de “noite
erma” e de “essência perdida” (“A Escolha das Palavras”). Ao se ver, portanto,
como um anti-Orfeu, ou seja, como aquele que não agrega, mas que “canta” a
derruição do mundo, Paulo Plínio Abreu favorece a elegia como recondução moderna
em conformidade com T. S Eliot que também viu um mundo em dispersão. Seus
pequenos poemas elegíacos, desnudando a fragilidade do mundo das palavras,
reúnem, como poesia, esses cacos dispersos, impossibilitados da sagrada e
secreta reunião.
BIBLIOGRAFIA
ABREU,
Paulo Plínio. Poesia. Prefácio, notícias e notas de
Francisco Paulo Mendes, 2ª Edição. Belém : EDUFPA, 2008.
______.
Poesia. Prefácio, notícias e notas de Francisco Paulo Mendes, Belém : EDUFPA,
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[1] A primeira capa traz o ano de 1978; a
folha de rosto indica o ano de 1977. Segundo informações do professor Benedito
Nunes, em uma comunicação pessoal (Feira Pan-Amazônica do Livro, em 2005), a
edição princeps é publicada em 1978.
[2] BERMUDES-CAÑETE, F. Rilke, p. 44.
[3] RILKE, Rainer Maria. Os cadernos de Malte Laurids Brigge, p.
45.
[4] BERMUDES-CAÑETE, F. Rilke, p. 14.
[5] Segundo o professor Francisco Paulo
Mendes em “Notícias, notas e variantes”, p. 181 do livro Paulo Plínio Abreu. Poesia. UFPA, 1978.
[6] A palavra “auseinanderfällt” aparece grafada
como “auseinderfällt”.
[7] BAUMANN, Hanns. Orfeu. 1990,
p. 09.
[8] DETIENNE, Marcel. A escrita de Orfeu.
1991, p. 87. “Orfeu [...] reúne em torno da voz os seres vivos animados ou
inanimados da terra, do céu e do mar [...] árvores, pedras, pássaros e peixes.”
[9]
BULFINCH, Thomas. Orfeu e Eurídice, 2006, p. 184.
[10] TEIXEIRA,
Ivan. Cem anos de Simbolismo: Broquéis e alguns fatores de sua Modernidade, São
Paulo : Martins Fontes, 1993.
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