Benilton Cruz
Os mitos constituem crenças e tornam-se padrões reguladores do que pode ser educado, protegido, rememorado, projetado e temido.
Circulam de boca em boca, e vivos delimitam territórios, nações, culturas, linguagens.
Mitos têm horários certos para serem contados. Correto ainda é considerá-los dentro dos meandros da oralidade, como primeira prática verbal da comunidade em sua identidade linguística.
Mitos modelam a linguagem, a mente, a noção do certo, do errado dos limites. São formas das tradições passadas para moldarem as gerações futuras como aprendizagem e fundamento de princípios reguladores da vida.
Mito e linguagem modelam-se.
Os mitos elevam ao sagrado a língua e sua capacidade de discernir o mistério.
Liberdade e a ousadia são cúmplices de uma mesma palavra: revelação. O mito não se diz; revela-se.
Assim têm eles os seus horários para acontecer. Não é a qualquer hora que o espírito está receptivo ao que é para o ouvir e o dizer.
É como uma aula: o mestre precisa da atenção de seus
alunos, carece afinar a voz. Mitos são ensinamentos reservados.
Onde há mito há um desdobrar.
No caso do Brasil, o saci não usa um chapeuzinho vermelho, principalmente dessa menina que ousou atravessar a floresta, ou do vermelho típico do vestuário europeu (em especial os cardeais do Vaticano) - o barrete vermelho - ou do redcap - visto onde houve derramamento de sangue, masmorras, dos castelos ingleses e escoceses, ou da mística celta - o saci usa um barrete da mesma cor, típico dos personagens vistos não como atrocidades mas sim através de faceirices, molecagens, brincadeiras, "diabruras", espertezas - mais para o lado do curupira, do deus Atis que vivia em uma árvore e usava um barrete vermelho - símbolo da liberdade -, e até do papai Smurff e Noel.
Mas será que existe um elo entre esses três personagens míticos?
Por que a inocência do chapeuzinho ou do sanguinolento redcap e as diabruras do saci têm que ser assinaladas pela mesma cor? - o barrete vermelho está na Carta de Caminha como inevitável encontro de culturas com o cocar tupiniquim, e o choque dos navegadores lusos com as penas vermelhas - Qual é realmente o verdadeiro significado dessa cor nas três histórias?
Todos torcem para Chapeuzinho Vermelho, mas não devemos esquecer o que significa a derrocada do lobo e o sangue derramado na versão do redcap.
2O mito revela o grau da violência com a
tonalidade que a simbologia criou. O vermelho é a cor de experiências marcantes,
a nuança das emoções fortes, o preço de uma conquista, de uma revolta, da
fúria, da vingança.
Se pensarmos no mito como um domínio de um interdito,
esta afirmação requer a profusão da fala através da ação de narrar, aquele ato
que “desata”, desfibra e destrança o próprio interdito. Foi-se a frase
anterior; nasceu o mito, exemplo de frase desdobrada, e então surgida a narrativa surge a lenda, um dizer.
No mundo dos mitos, as palavras, entretanto, guardam as chaves da revelação cuja natureza consciente e inconsciente oscila de acordo com os anseios e a necessidade da comunidade no mundo desperto e no onírico.
Palavras pintam às vezes o mundo dos olhos ou o mundo dos sonhos. Pintam a semelhança e a diferença dos olhos que enxergam e dos sonhos que revelam o mundo sensível.
Seria a narrativa o desdobrar do que se percebe no físico e no metafísico? a dualidade do visível e o invisível tão carente à psicologia, à alma, ao espírito, ao ser cuja presença não descarta a violência?
Pergunta esta tão antiga que não vale questionar a perda de relação entre o homem moderno e a natureza.
Somos órfãos brincando na solidão da cidade grande, povoada e ao mesmo tempo solitária. Uma coisa é certa o homem nunca deixou de contar e se lhe falta, inventamos. Por isso mito virou sinônimo de mentira.
E no formalismo fatal da sociedade industrial ou mesmo
pós-industrial, já que o Brasil é um híbrido de tantas culturas e um só idioma, o barrete vermelho do saci esconde o agressivo lúdico da realidade.
O certo é que tudo o que se deve conhecer se torna uma linguagem. Mitos têm uma espécie de cifras, o lúdico da linguagem, e são como imagens, são operações senso-racionais, veículo da realidade.
O tempo mítico flutua e insinua a condição de existir o passado e o futuro como um altar da crença.
E brincar faz parte do jogo.
Benilton Cruz
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