Benilton Cruz
O inferno está cheio de
seriedades incontestáveis
Fernando Namora
INTRODUÇÃO
Ler Domingo
à Tarde, de Fernando Namora, é topar com a palavra doente e inválida ao
diálogo em um hospital como cenário do romance. A fala das personagens desnuda
a solidão implícita às relações mesmo àquelas imputadas à necessidade do
trabalho. A marca de temporalidade no dizer de um domingo à tarde é emblema de
um tempo inóspito, o que recorta a história individual, condenando-a ao
isolamento, ao encontro do vazio e de Deus. O que pode dizer um romance que se
passa, boa parte, em um hospital, senão a metáfora de um mundo à parte, isolado, enfermo e
incomunicável?
Trago aqui uma leitura e uma estratégia ao diálogo a partir do leitor - que no final irei identificar com um outra possiblidade, já que pela narrativa o artifício do diálogo se revelou falível, mesmo que necessário ao romance e sua também possível estrutura.
A obra, lançada primeiramente em 1961, aborda a história de um médico especializado em doenças terminais, que acompanha os seus pacientes sem se envolver e se mostrar sensibilizado pela fragilidade dos moribundos.
Ao conhecer Clarisse, as coisas mudam.
O Dr. Jorge se vê
cercado do desafio de conhecê-la e a partilhar com ela seus últimos dias e
experimentar uma série de sensações e sentimentos até desconhecidos. A
narrativa se vê, portanto, entre a impossibilidade do diálogo e a abertura
criada pela personagem como refúgio e esperança.
2. A VIGÍLIA DE SI
Narrar é ação móvel, instável, dis-cursus, “[...] a ação de correr para todo lado, idas e vindas[1]”, desvios, armadilhas, ciladas e digressividades sobre as quais todas as aberturas não impedem o “di-álogo”, a palavra a dois, mesmo quando um segundo a falar nem sempre está a ouvir.
O artifício criado pelo Dr. Jorge é o da
estratégia da incomunicabilidade, a que gerida pela observação, caráter
pertinente à conduta científica de quem exerce a medicina, deixa-se motivar
pelo espaço da hospitalidade ainda implícita ao lugar onde se recolhe os
doentes: “E pus-me a pensar que o hospital era a minha única ou
última oportunidade de diálogo humano” [2].
A busca pela palavra do outro dá a real
dimensão da experiência humana, torna-se uma estratégia. O monólogo do narrador
é o da mesma condição daquela dos personagens: o verdadeiro diálogo humano concebe-se
como uma condição dramática, não é para se ouvir e sim para se falar. A palavra
é trânsito, ação de trazer algo: “os meus livros representam quase um
itinerário de geografia humana, por mim percorrido; as andanças do homem
explicam as do escritor”[3].
A narrativa é, portanto, um percorrer do
homem que vigia o lugar de onde nasce o escritor. A obra vai adiante e inunda
com o artifício da ficção e começa a revelar outro caminho: o romance abre-se a
partir do não-social: “Nesse tempo, ou já muito antes, era considerado um tipo
insociável. Fumava desalmadamente, macerando o cigarro de um canto para o outro
da boca, num jeito nervoso nada fácil de imitar [...]” (p. 17)[4].
A lida ontológica que “ser homem, é ser só[5]”
implica recurso necessário ao autoconhecimento, identidade. O “insociável” é um
desses indicadores, mas vai funcionar como recurso de conhecimento ao narrador.
A observação de que “Nem os dramas resistem à monotonia” (p. 62), ela mesma “a
engrenagem de todos os dias” (p. 61) não cabe à vida e nem à narrativa, o
importante é variar. A monotonia absorve do homem o ritmo da vida e anula a
motivação, a criatividade:
Não
havia muito tempo para pensar em nós, embora as coisas pessoais ao serem
soterrradas se reservassem o direito de um dia, explodir. Era isso talvez que
eu receava, sem o confessar, desde que a vida profissional, naquele serviço
odioso, me fechara a porta a outros interesses que, por pungente contraste, eu
classificara de abusivos. Porém, uma vez por outra, surpreendia-me à beira de
uma fuga. (p. 61-62)
A sucessão de dias em torno de “laboratório,
consulta, doentes” (p.61) indica que a rotina aprisiona, mesmo quando se faz a
ponderação de que “– Mas o hospital não é uma prisão: não tem guardas à entrada
nem à saída.” (p. 41). O hospital (hospitium,
o lugar onde um hóspede era recebido), aparece como um paliativo da quase
degenerada relação humana, quando esta gira em torno da desconfiança, do receio
pelo diferente e pelo medo, a reação é travada. A hospitalidade não reconhece
mais o seu lugar.
Em um passeio de automóvel “longe das zonas
mais recolhidas da cidade” (p. 141), deixando um pouco o hospital e a cidade de
lado, o casal protagonista do romance, Dr. Jorge e Clarisse, mostravam as suas
contradições: ele comedido, dentro do padrão de homem citadino, distante da
natureza; ela, amante do acaso, da aventura sobre as menores coisas, que “lhe
mordessem a febril curiosidade” (p. 142). Em um dado momento do passeio, ambos
diante da situação de “pedir guarida ao primeiro tecto que nos deparasse” (p.
142), Clarisse acaba convencendo o Dr. Jorge a cometerem um ato inusitado:
pedir aos moradores da beira da estrada um cômodo para descansar.
Essa
atitude típica do entusiasmo de Clarisse acaba fadada ao fracasso:
–Tem cómodos ? –
repetiu Clarisse. E admirei-a pelo heroísmo.
Conquanto Clarisse
tivesse adaptado a linguagem às circunstâncias, o homem puxou as alças do fato
de ganga e submeteu-nos a felina inspecção, após a qual disse:
– O que há, está à
vista.
E voltou-nos as
costas. Clarisse teve que aceitar o fracasso. (p.144)
Logo depois será a vez do Dr. Jorge convencer
Clarisse sobre a necessidade da “hospitalidade alugada” (p.143). Essa da qual
não se corre o risco de merecer a recusa, pois é o dinheiro que fala mais alto.
A saída será recorrer ao hotel: “Quando descíamos a vereda que nos levaria ao
cobiçado automóvel – e dessa vez estava certo de Clarisse concordar com as
vantagens de um bom hotel!” (p. 144)
Esta cena que retrata muito bem as diferenças
entre os personagens do romance serve para compreender que o mundo também se
assemelha a um grande hospital. Não há cômodos para aqueles que o vivem ainda
na espontaneidade do entusiasmo incondicionado. Não há lugar para os que ainda
dão motivo a euforia como atitude gratuita na vida. É uma cena que lembra um
trecho famoso de um dos poemas em prosa de Baudelaire, aquele que diz “Esta
vida é um hospital onde cada enfermo está possuído do desejo de mudar de cama”[6].
Somos os enfermos a procura da cama, do cômodo, da hospitalidade, e não a
encontramos.
A literatura mostra-nos dentro de seus
domínios a essência, ou mais enfaticamente, a maneira mais precisa de se
mostrar a realidade e seu escape como uma "Clarisse" - o importante é a ficção. Afinal a arte de narrar, assim como as outras estéticas, sempre esteve
aliada ao seu tempo e a suas angústias de linguagem e de novas formas de dizer, sem escapar do momento histórico em volta, cada uma à roda de sua ficção: “A literatura
não é realmente um reflexo do processo social, mas sim a essência, o resumo e o
sumário de toda a história.”[7]
Essa essência não quer dizer síntese ou a redução do que convém compor uma
sociedade. A literatura mostra essa essência despojada de qualquer
artifício que à primeira vista se apresenta com roupagens do discurso - é a necessária fala ou escrita - uma voz apenas, o seu discurso é portanto solitário.
O trecho a seguir ilustra a passagem do
romance onde a tênue sombra da verdade liga-se à realidade. Em um outro
passeio, longe das convulsões da cidade, Clarisse faz “parar bruscamente o
carro junto dos muros de uma quintarola dos arredores” (p.155) - ali por perto
há muitas lilases, uma colina e a branda ventania do entardecer. Deitados na
relva dá-se este diálogo entre Jorge e Clarisse:
–
Às vezes tenho a impressão de que falo, ou que me escutas, de muito longe. E
quando me calo, é como se nenhum de nós fosse real. – E emudeceu, a sopesar a
verdade do que dizia.
–
Ao menos tu, serás real?
[...]
–
Deves ter razão em duvidar. Para te falar franco, chego a julgar que me
inventaste – e apertei os dentes, atravessado por uma dor instantânea.
–
Mas não invento a tua frieza. ( p.158)
A fala de Jorge, narrador-personagem
(autodiegético, como diria Genette, aquele “em que o narrador da história
relata as suas próprias experiências como personagem central dessa história”[8])
é a fala do ouvir e do calar. É a voz daquele que nos alude com a noção mais
bruta da verdade, a de que ela não se inventa. É um fio esticado ao limite que
se adentra a uma sombra além da palavra. A palavra é literatura e o seu fio de
verdade, a que, todavia desnuda: “[...] uma grande maioria das questões
suscitadas pelo estudo da literatura [...] questões sociais”[9].
Assim, não descartamos que o que toca a
literatura torna o tema do social algo pertinente a reflexão mais necessária.
Esse grão de linguagem não existe sozinho: germina onde a voz se reparte,
solitária e solidária do narrador que aponta os desastres sociais não para diminuir
o sofrimento do mundo, mas para ser obra de arte.
A literatura será este suporte que protege a
criação e a linguagem num âmbito social. Seu pano de fundo é a função de
transcrição que opera nos mais variados níveis da linguagem, e assim provoca um
questionamento abrangendo a totalidade, que o discurso não-literário não
conseguiria. A literatura é esse asilo da transgressão, todavia, movimento em
perpétuo agir em torno de uma reciprocidade:
A literatura é [...]
um sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras e sobre os leitores; e só
vive na medida em que estes a vivem, decifrando-a, aceitando-a, deformando-a. A
obra não é produto fixo, unívoco ante qualquer público; nem este é passivo,
homogêneo, registrando uniformemente o seu efeito. São dois termos que atuam um
sobre o outro, e aos quais se junta o autor, termo inicial desse processo de
circulação literária [...][10]
A reciprocidade, que age nessa “tríade indissolúvel”:
obra, autor e leitor, é a do reflexo que pode haver entre uma determinada
situação social que, por sua vez, pode ser relevante para as questões da
sociedade, pois esta está sempre necessitada de soluções para seus problemas.
Às vezes, os grandes escritores reconhecem de forma explícita a reciprocidade
que pode haver entre a obra e o leitor. Este reconhecimento aparece, muitas
vezes, dentro da narrativa:
Tenho perfeita
consciência de que enfio nesta história pormenores supérfluos para quem me lê –
se isso chegar a acontecer –, amaranhando-os nas situações que verdadeiramente
a fariam progredir; mas se eu os guardei
com tal particularidade, se se me estampam os nervo com planos
indissolúveis da odisséia de Clarisse [...] é porque, no fim de contas, obedeço
institivamente a um ritmo ambicionado e sempre esquivo: a harmonia do tempo [...]
( p. 214).
O “para quem me lê”, do trecho acima, aparece
como recurso de escritores modernos que nos introduzem a visão crítica e
reflexiva do mundo como aquele empregado, na literatura brasileira, por Machado
de Assis. É o reconhecimento de que haverá alguém à escuta. Uma certa
reciprocidade que não será o essencial na narrativa da obra, mas que de alguma
maneira será precisa para haver intimidade, como se a história do romance fosse
o sopro de um segredo, como é o caso deste trecho do capítulo 133, “Uma idéia”,
de D. Casmurro:
[...] não havendo almanaques
no cérebro, é provável que a idéia não batesse as asas senão pela necessidade
que sentia de vir primeiro a ela, antes de se ver cumprida. Já me vais
entendendo; lê agora outro capítulo”[11]
Nos trechos de ambos os escritores percebe-se
que o leitor é reconhecido, enfim, como o importante elo do processo literário.
Nada mais real, portanto, do que uma literatura próxima do leitor, tão próxima
que ele é quase ouvinte e até mais do que isso. A intimidade das formas verbais empregadas em “para
quem me lê” e “lê agora outro capítulo” oferece ao leitor melhores condições
para que este julgue, analise, compreenda o que está sendo escrito e participe como o interativo caso de personagem na dimensão da leitura.
PARA CONCLUIR
Domingo à Tarde aguça nossa sensibilidade às questões existenciais atreladas ao social, em um ambiente no qual o homem se vê mergulhado em uma rede de relações onde a última esperança de diálogo estabelece-se por via do trabalho.
A obra culmina outro diálogo possível, na dimensão da leitura com mais um personagem, exatamente o leitor, e assim retornamos à esperança da comunicação em outro nível, através da participação intelectual por via da interação com o texto e sua autonomia.
Ao final do romance morre Clarisse, a que trouxe um sentido concreto de vida ao carrancudo Dr. Jorge. Morre a condenada, a morta-viva, de uma doença incurável, que lhe deu, em um curto período de tempo, a possibilidade de alcançar esse tão almejado diálogo da essência humana em sua solidão.
A vida do médico retorna à normalidade naquele setor de doenças incuráveis
do hospital. Para este, resta-lhe Lúcia, a frágil, a sem o impulso eufórico e
libertino de Clarisse, a que lembra o seu dia a dia.
Fica-nos a frieza de um homem ligado à ciência, sob os frios da razão a sua malha insossa, mas necessária ao artifício do conhecimento a revelar inclusive a impossibilidade do diálogo, mas a esperançosa abertura do encontro entre dois seres sedentos pelo único reduto do encontro que resta, a palavra, em um romance rodeado de silêncios.
BARTHES, Roland. Fragmento de um discurso amoroso. Tradução Hortência dos Santos. Rio de
Janeiro, Francisco Alves, 12a. Edição, 1994.
BAUDELAIRE, Charles. Anywhere out of the world, In:
O Sleen de Paris. Lisboa:
Relógio d’água Editores, 1991, p. 138-139.
CÂNDIDO, Antônio. Literatura
e sociedade: estudos de teoria e história literária. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 2a. Edição, 1967.
LUKÁCS, Georg. Teoria do Romance. Tradução de Alfredo Margarido. Lisboa: Editorial Presença,
s.d.
NAMORA, Fernando. In:
Prefácio, Casa da Malta, Lisboa:
Publicações Europa-América. 1965, p. 9-55.
______. Domingo
à Tarde, Lisboa: Publicações Europa-América. 6a. Edição. 1966.
REIS, Carlos e
LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de Teoria
da Narrativa, São Paulo: Editora Ática, 1988, p. 118-125.
WELLEK, René e
[1] BARTHES,
Roland. Fragmentos de um discurso amoroso,
1994, p. 01.
[2] NAMORA,
Fernando. Domingo à Tarde, Lisboa,
Publicações Europa-América, 1966, p. 71. Ao longo deste trabalho os números de
página são desta edição.
[3] NAMORA,
Fernando. Casa da Malta, prefácio da
sexta edição, Lisboa, Europa-América, 1965,
p. 24.
[4]. A
demarcação imprecisa do tempo em que aconteceu a história, indicada pelo
demonstrativo “nesse”, sugere-nos a ideia
de que “o sujeito não é para si
mesmo senão fenômeno, objeto” (Lukács)
[5] LUKÁCS,
Georg. Teoria do Romance, Lisboa,
Editorial Presença,s.d., p. 36.
[6]
BAUDELAIRE, Charles. O spleen de Paris: pequenos poemas em prosa.
Lisboa, Relógio d’água Editores. 1991,
p. 138
[7] WELLEK,
René e WARREN, AUSTIN. Teoria da Literatura, Lisboa,
Europa-América, 5a. Edição, s.d., p. 115.
[8] REIS,
Carlos e LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de Teoria da Narrativa,
p.118
[9] WELLEK,
René e WARREN, Austin. Teoria da Literatura, p. 113
[10]
CÂNDIDO, Antônio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária.
São Paulo. Companhia Editora Nacional, 2a. Edição, 1967, p. 86.
[11] ASSIS,
Machado de. D. Casmurro. s.d., p. 142.
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