Benilton Cruz[1]
Loucura
é o mesmo que sabedoria
ERASMO
DE ROTERDÃ
Dom Quixote é um livro para todas as idades. É a primeira
coisa que essa obra consegue fazer: abolir as diferenças. Seus personagens encantam
crianças e adultos; sua estrutura narrativa debruça-se sobre a fronteira entre
realidade e ficção, e de maneira crítica descobre na leitura um dos sentidos
mais plenos da ficção. A ficção torna-se, portanto, crítica da literatura.
Nenhuma obra, das chamadas clássicas, fez uma apologia à
leitura como Dom Quixote, e é por isso que ela é uma das mais queridas. Principalmente,
quando nos vemos em um mundo que, gradativamente, abole a leitura das escolas,
da família e do nosso cotidiano, ameaçando-a de extinção. Podemos imaginar
Aquiles empunhando a espada, ou Ulisses, certeiro, com seu arco e flechas,
aniquilando os pretendentes de Penélope. Mas, não podemos imaginar Dom Quixote
sem um livro em mãos.
A obra de Cervantes, publicada a primeira parte em Madri, em
1605, torna-se, a cada edição, mais atual e seu protagonista mais real do que
nunca. Dom Quixote completa quatrocentos anos, e a maior homenagem que podemos
fazer a Miguel de Cervantes, seu autor, é ler este livro genial que mudou a
ficção para sempre. Em Dom Quixote encontramos uma ficção a revelar que a única
realidade é a própria ficção porque “tudo é artifício e traça”.
Aliás, Cervantes transfere tudo para a ficção a ponto de nem
ele mesmo se considerar o autor do livro, como ele mesmo confessa no Prólogo,
quando diz que é “padrasto” de Dom Quixote, e no capítulo 40 da segunda parte,
quando conclama a genialidade de um tal Cide Hamete Benengeli, o verdadeiro
autor de Dom Quixote: “Ó autor celebérrimo! Ó ditoso Dom Quixote! Famosa
Dulcinéia! Gracioso Sancho Pança! Vivais todos juntos, e cada um de per si,
séculos infinitos, para o gosto e universal passatempo dos viventes”.
Uma das mais
significativas contribuições de Cervantes está justamente aí, na leitura como um
artifício tão importante quanto a própria ficção em si, não apenas na concepção
da estrutura da obra como também no excepcional poder de crítica que a leitura levanta
– esta, sim, a meu ver, a verdadeira “arma” de Dom Quixote, a crítica da leitura, o que no fundo representa a essência do ato de ler.
Começando por ele, o próprio Dom Quixote é criado
por um outro personagem do livro: Alonso Quijano, que enlouquece após as
leituras que lhe “secaram o cérebro” e se autonomeia “Dom Quixote”. Pela
primeira vez na história temos um leitor como personagem principal, um
personagem do personagem. Neste exato momento em que Alonso Quijano vira Dom
Quixote temos um dos maiores feitos literários da história. Não só porque as
coisas ficam mais engraçadas, mas sim pelo fato de nosso herói acreditar nas
coisas que leu e não nas coisas que estão diante de seus olhos. Seu “encantamento”
não é mágico e sim literário.
Nosso herói tem em torno de sessenta anos, está na “terceira
idade”, não tem a força e a agilidade de Aquiles, nem a precisão no manejo das
armas como Ulisses. É fraco, magro, desengonçado, “pouquíssimo ligeiro”, melancólico
(daí o outro nome de “Cavaleiro da Triste Figura”), e cavalga um pangaré
chamado Rocinante, “perdeu o juízo” após noites e noites a ler novelas de
cavalaria, a ponto de preferir o fantástico Amadis de Gaula ao realista El Cid,
pois o primeiro, como é de seu gosto, é capaz de um só revés partir “pelo meio
a dois feros e descomunais gigantes”. Era esse encantamento que o levou a uma
constatação: para Dom Quixote só existia uma verdade, eram as coisas que ele
lia. E o que faz nosso herói da terceira idade? em plena idade do siso? Perde o
juízo?
Sim, temporariamente, para viver a sua loucura, pois que
para Cervantes (e isso está no capítulo 15 da segunda parte) existem dois
doidos: o que é doido por não se conhecer e aquele que é doido por vontade – e
é este o caso de Dom Quixote: doido por vontade. Foi ousado, apaixonado,
cortês, decisivo, o mais nobre dos personagens jamais criados, um autêntico
fidalgo, obcecado pela justiça, perfeito exemplo de um dos códigos mais bem
estruturado de todos os tempos: o código da cavalaria. Recobrou o juízo e
morreu, de certa maneira, feliz, em sua cama como um autêntico cavaleiro
haveria de morrer, no dizer do refinado código da cavalaria.
A meu ver Cervantes deixou para nós, enquanto leitores, uma
esperança: a de que a felicidade está na leitura, essa tal felicidade que nos
remete a desconfiar de que só a ficção seja a única realidade e tudo o mais
passaria por dual, conflituoso e sufocador. Há sempre algo mais em Dom Quixote,
e assim mais do que a ficção existem as ficções: a ficção dentro da ficção ou a
história dentro da história como em As
Mil e uma Noites, outra incomparável obra tão exemplar como única, escrita
por alguém (ou por mil e um autores) com a mesma perspicácia de Cervantes.
Vejamos: primeiro, Cervantes criou, a partir do narrador, um
autor fictício para o Quixote. Esse
“autor” é Cide Hamete Benengeli, notado principalmente a partir do Capítulo IX
como o “historiador arábigo”, o autor da “História de Dom Quixote de la Mancha”
(I, 9, 60), traduzido por um “mourisco alfamiado”, ou seja um mouro que “fala
castelhano e o escreve em caracteres arábicos” que o Narrador, (voz em 1ª
pessoa, anônima) da obra como tal, encontrara ali mesmo naquele mercado de
Alcaná de Toledo. Há, no mínimo, três “autores” do Quixote: 1) o Narrador (a
voz literária de Cervantes), 2) Cide Hamete, às vezes, chamado de “primeiro
autor”(II, 40, 468) e por que não – 3) esse mourisco alfamiado, pois foi ele
quem traduzira O Quixote do árabe
para o espanhol (e sabe lá se ele não modificara alguma coisa).
Essa prática de encontrar um “autor” para a história que se
vai narrar é relativamente comum, como diz o próprio Cervantes, e teria sido
mal aproveitada nas novelas de cavalaria. Também na literatura e no cinema isso
é relativamente freqüente: sempre ouvimos de alguém uma história que acabaremos
por contar. Cervantes recriou isso, até com relativa simplicidade, e deu uma
autonomia que faltava. Cervantes desafia a verossimilhança. Vai estabelecer um
sentido pleno à ficção. A obra, como tal, primeiramente, manifestaria assim a
ficção plena ou a ficção pura. O narrador do Quixote criou Cide Hamete que criou Alonso Quijano que criou Dom
Quixote. De qualquer maneira o poeta está afastado “três graus da natureza” como
se reporta Platão. Mas o que interessa agora é que esse afastamento se deu
através da leitura. E é a leitura que estabelecerá a ligação entre esses níveis
de estruturação da obra. A leitura será a “crítica” dessa ficção.
Se a verdadeira “arma” no Quixote é a leitura, a verdadeira
luta é contra as duplicações da realidade. Mas, antes gostaria de comentar essa
não menos estranha “multiplicação” na obra, multiplicação esta da qual o
próprio Cervantes será severo crítico a ponto de se contentar com uma
“duplicação”. Vejamos: deixando de lado a pouca participação do tradutor do
Quixote, o mourisco alfamiado, são, em caráter ficcional, “dois” basicamente os
autores do Quixote: Cervantes
(enquanto o narrador) e Cide Hamete (o cronista arábigo). São dois
protagonistas: Alonso Quijano e o próprio D. Quixote. Existem duas Dulcinéias,
a lavradora Aldonça Lourenço e a Dulcinéia Del Toboso, a “senhora dos seus
pensamentos”, a “sem-par”, dentre outros epítetos (interessante esse “sem-par”
– essa ideia, – e fica na ideia mesmo, de uma “Dulcineia” perfeita, como a do
círculo idealizado por Platão). E, por incrível que pareça, existem “dois” Dom Quixotes, no caso, a primeira parte,
lançada em 1605 e a segunda parte, de 1615.
Essa duplicação concorre, repito, originariamente,
talvez, com As Mil e uma Noites, só
que a diferença é que nesta as histórias contadas são infinitas e circulares
(ver o texto Magia Parciais do Quixote
de Borges). Alegra a qualquer leitor
a coincidência de Cide Hamete Benengeli ser “arábigo” como o inominável autor
de as Mil e uma Noites. Talvez uma
idéia de duplicação encaixe-se com a ideia de multiplicação ou de 'infinitização' – seja lá o que for, onde quer que se abra este livro estaremos diante da
possibilidade de uma obra que alcançou o misterioso âmago da criação. Dois “autores”;
dois “protagonistas”. Neste caso a ficção pode também concorrer com a verdade,
se não superá-la, porque cria a si mesma. Então, ficção e realidade seriam a
mesma coisa? (Poderíamos até suspeitar que Cervantes teria escrito As Mil e umas Noites).
Até mesmo na relação entre Rocinante e Dom Quixote existe um
teor de misteriosa duplicação, “quatro
dias levou a cismar que nome lhe poria” e depois “Posto a seu cavalo nome a
contento, quis também arranjar outro para si; nisso gastou oito dias; e ao cabo disparou em chamar-se Dom Quixote”(I, 1,31)
(grifo meu). Calma “desocupados leitores”. Estamos diante da criação. Era
preciso nomear primeiro o cavalo e depois o cavaleiro, como manda o “Código da
Cavalaria”. E essa estranha coincidência na duplicação dos dias na nomeação de
cavalo e cavaleiro não se trata, essencialmente, de uma literatura fantástica,
a essência de todas as literaturas, mas de uma luta contra essa tormentosa
duplicação. O cavalo do Quixote não tinha nada que ver com Bucéfalo, de
Alexandre ou o Babieca, do Cid. Não tinha que ser uma cópia deles, mas “o
primeiro de todos os rocins do mundo” (I, 1,31).
O interessante aqui, é que já em seu nascedouro, O Quixote
digladiava-se entre dois cavaleiros distintos: o realista El Cid e o fantástico
Amadis de Gaula. E parece que Cervantes não optou por nenhum deles. Preferiu
criar um próprio cavaleiro, com as bases naquele passado tão próximo vivido
ainda pelas Novelas de Cavalarias. Quando me refiro a um “próprio cavaleiro”
quero dizer que se perde o herói, mas ganha a ficção, como melhor explica o
escritor argentino Juan José Saer, em seu interessante artigo A moral do fracasso em Dom Quixote, no
qual defende que a obra de Cervantes relevou a autonomia da ficção como uma das
contribuições à narrativa : a
ficção deve sempre preservar sua autonomia em relação a seu referente, criando
um mundo próprio que não se limita a ser cópia do que supostamente existe fora
do texto. (Saer, 2003: 01)
Poderíamos até pensar que o Dom Quixote apareceu “tarde”, quase um século depois do o Elogio da Loucura de Erasmo de Roterdam,
lançado em Paris em 1509. O relativismo de Erasmo, em uma época de dogmatismo,
foi fundamental para modernizar intelectualmente a Europa. Digo relativismo,
pois no Elogio da Loucura, na mísera
edição brasileira da Ediouro, lê-se, por exemplo, na página 84, “Tudo na vida é
tão obscuro, tão diverso, tão oposto, que não podemos certificar-nos de nenhuma
verdade.” Esse espírito libertário de Erasmo abriu espaços para literaturas e
mesmo escrituras menos dogmáticas, sabendo nós que a literatura é lugar para
esse tipo de comportamento. Não vamos dizer que Erasmo é “pai” do Quixote, se nem o próprio Cervantes se
considerava o tal.
Todos sabem, mesmo sem ter lido a obra, que um é magro e
outro é gordo; que um é alto e o outro é baixo. Um tem “ares” de louco o outro
julga ter a razão (dizer que Sancho de todo é são é estranho, pois ele aceita a
“ilha barataria” como paga pelos serviços de escudeiro – Ora, aceitar essa
impossível fantasia não seria também loucura? – além do mais como pode se
pensar em uma ilha em uma região tão seca como Castilha?). E não fica por menos
no capítulo XII da Segunda Parte, a amizade entre Rocinante e o Ruço, que
chegavam a entrecruzar os pescoços e ali ficavam por “três dias...olhando,
ambos, atento para o chão” (II, 12, 356).
Sobre essa polêmica da erudição, Borges dirá que não é
conveniente colocarmos na mesma prateleira, lado a lado, as obras de Góngora e
de Quevedo, pois que se odiavam e não cabe a erudição “apagar” essa afronta,
melhor dizendo, o leitor não pode ser enganado e muito menos pensar que na
literatura tudo seja um mar de rosas. Podemos dizer, dentre outros motivos, que
o leitor é chamado a atenção para isso, desde o início:
Desocupado
leitor, não preciso de prestar aqui juramento para que creias que com toda a
minha vontade quisera que este livro, como filho do entendimento, fosse o mais
formoso...
Ainda no Prólogo (e diga-se de passagem, o que é muito
gostoso ler os prólogos dos autores de língua espanhola – seria um gênero que
os hispanos-escritores souberam prolongar?), Cervantes conversa com um amigo,
no mínimo, é algo estranho, pois não podemos identificar esse amigo com o
leitor. E esse amigo o convence de que ninguém irá notar que fora o próprio Cervantes
que escrevera os sonetos introdutórios da obra. Até nisso Cervantes foi genial,
ao compor sua própria introdução, eliminou o falso compadrio academicista nas
práticas de apresentações das obras publicáveis. Eliminou a aparência, a
hipocrisia literária.
No Brasil, Machado de Assis, por exemplo, mais a contraponto
do que realmente disposto a colaborar com o leitor transfere para os seus
“cinco leitores”, a meu ver, responsabilidade demais. Machado criaria um
“antiprólogo” no Memórias póstumas de Brás
Cubas, não é bem assim com Cervantes, porque justamente a literatura
espanhola preservou e desenvolveu o hábito de se redigir prólogos memoráveis.
Enquanto Machado dispara um simples “ao leitor”, Cervantes enceta um
“desocupado leitor”, não como ofensa, mas como a maior provocação ou o mais
prazeroso convite que um leitor já tenha recebido em um Prólogo. Um convite
para que todos se sintam, no mínimo, fidalgos ao lerem O Quixote. Sintam-se fidalgos e também personagens nessa aventura. Assim
se reporta o Historiador Álvaro Antunes, em seu interessante artigo Artificiosos e Verdadeiros: Leitores e
Práticas de Leitura em Dom Quixote de la Mancha da revista Diálogos, do Departamento de História da Universidade
Estadual de Maringá:
Cervantes
se dirige ao leitor chamando-o de desocupado e caríssimo. Naquele tempo, ser
chamado de desocupado não consistia em ofensa. Ser desocupado era uma espécie
de valor, de fidalguia. Ser desocupado permitia, entre outras coisas, que ‘passatempos
nobres’, como a leitura, fossem cultivados.(...) Contudo, aos chamar seu leitor
de desocupado, Cervantes não identifica necessariamente seu público como sendo
formado exclusivamente por fidalgos. Talvez, com este elogio, Cervantes
pretendesse simplesmente acomodar o leitor, dar-lhe as boas vindas. (Antunes,
2005: 05).
Como se todo leitor fosse um fidalgo. Diante da leitura as
classes perderiam suas fronteiras, e democraticamente, a leitura anularia
nobres e plebeus. Anularia os muros das discórdias. Melhor dizendo: um leitor
de Dom Quixote nunca será pobre.
Cervantes celebra a tolerância, em uma época de Inquisição. Até mesmo no
capítulo LIX da Segunda Parte, quando fica claro o conhecimento de Cervantes
sobre a publicação do “Segundo Tomo”, escrito pelo esperto Alonso Fernández de
Avellaneda, não houve por parte de Cervantes retaliações. Pelo contrário,
através da fala do personagem Dom João diz a máxima de Plínio, o Velho: “não há
livro tão ruim que não tenha uma coisa boa.”
Como homem das letras, Cervantes antecipa até Baudelaire
quando afirma “sou muito preguiçoso e custa-me muito a andar procurando autores
que me digam aquilo que eu muito bem sei dizer sem eles” (Prólogo I, 13).
Primeiro aceitar a preguiça seria aceitar um “mal”, depois acatar a noção de
que não “preciso de uma erudição” que se tem mostrado, em sua essência,
maligna, ou pelo menos encoberta pela aparência, justificariam um “espírito da
negação”, que mais tarde irá aparecer em Goethe, no Fausto, na fala de
Mefistófeles “o espírito sou que sempre nega!” (I, 1365), esse espírito da
negação que irá rondar toda a poesia romântica. Nem mesmo no Prólogo da Segunda
Parte, Cervantes se recusa a falar em vingança contra O Quixote de Avellaneda,
e diz ali mesmo que a sua “vingança” foi a de preparar esta Segunda Parte, pois
manco não saiu de “alguma rixa de taberna”, ao se referir que suas feridas não
foram nada menos do que da Batalha de Lepanto, melhor ainda: “onde a virtude
estiver em grau eminente, verás que é perseguida” (II, 2, 322).
Deixando as invejas de lado, e as “flores do mal” que mais
tarde Baudelaire iria cultivar, o leitor, a meu ver, é seu personagem tão
importante quanto o próprio Quixote. Todos lêem nO Quixote e quase todos o escrevem. Até Sancho que, sabe apenas
assinar, resolve ditar uma carta à Teresa Pança. (II, 36, 459-460). Todos os
personagens se rendem à magia da linguagem, especialmente o leitor que não
deixa de ser um personagem até mais real que Dulcineia, esta, que, em uma
rápida análise do capítulo VII da Segunda Parte, quem sabe não seja própria
poesia, uma vez que enquanto Alonso Quijano se inspira nas Novelas de Cavalaria
para incorporar o Quixote, (agora, eu, enquanto leitor para entrar nesse jogo)
para se inspirar em Dulcineia, Cervantes recorre simplesmente à poesia de
Garcilaso, especialmente as éclogas.
O que é belo aqui é ver em pé e igualdade: o leitor, o
Quixote, o Sancho, e a Dulcinéia como a poesia. E o leitor mais atento percebe
que os personagens do Quixote são leitores do próprio Quixote. Explico: nada
mais incrível do que o momento em que Dom Quixote e Sancho descobrem que
publicaram um livro sobre eles e o autor desse tal livro comete a falha ao
chamar a mulher de Sancho de Maria Gutiérrez! Ora, todos sabemos que é Teresa
Pança. Revoltado, Sancho exclama “Danoso Historiador” e ironicamente diz “muito
deve saber dos nossos sucessos, pois chama a Teresa Pança, minha mulher, Maria Gutiérrez! Torne a pegar no
livro, senhor meu amo, e veja se eu também por cá ando, e se também me mudou o
nome” (II, 59, 549). Poderíamos até pensar, sim é uma crítica ao Avellaneda, o
que quis ganhar dinheiro com a fama dO
Quixote, mas a crítica não pára aqui.
Aliás, bem antes, na fantástica passagem do “Expurgo”, o do
VI capítulo da I Parte, na qual o cura, personagem de Cervantes, analisa e
julga a obra do próprio Cervantes, dá-se uma autocrítica:
− A Galatéia de Miguel de Cervantes − disse o barbeiro.
− Muitos anos há que esse Miguel de
Cervantes é meu amigo; e sei que é mais versado desdita que em versos. O seu
livro alguma coisa tem de boa invenção; alguma coisa promete, mas nada conclui;
é necessário esperar pela segunda parte que ele já nos anunciou. Talvez com a
emenda alcance em cheio a misericórdia que se lhe nega; daqui até lá tende-mo
fechado em casa, senhor compadre. (I, 6, 51)
Ora, vejam só, tanta coisa aqui, nesta citação que só pode
ser um sonho, ou mesmo a realidade. Talvez a explicação para essa passagem
esteja logo no início desse sexto capítulo: a primeira obra a ser expurgada é o
Amadis de Gaula, a que rivaliza de certa maneira com o Quixote. Só o “primeiro”
Amadis de Gaula é perdoável, o segundo não, como o supérfluo “Amadis da
Grécia”. Este e tanto outros desdobramentos do Amadis de Gaula terão o mesmo
destino: “ao pátio, ao fogo!”. Aqui, retorno a uma das questões deste artigo: a ficção
talvez seja a única realidade, só o leitor seria real e só a leitura seria o
verdadeiro sentido do texto. Borges diz isso melhor através da seguinte
suposição: “se os personagens de uma ficção podem ser leitores ou espectadores,
nós, seus leitores ou espectadores, podemos ser fictícios”. Ou melhor: nós
seríamos menos reais que o personagem Quixote, por exemplo.
Outra perspectiva,
levantada pelo escritor argentino Juan Jose Saer, apesar de personagem fraco, O Quixote destruiu as epopéias[2].
Sepultou-as em definitivo. Vamos a um exemplo: o começo da narrativa diz:
Num lugar de la Mancha, de cujo nome não
quero lembrar-me, vivia, não há muito tempo, um fidalgo, dos de lança em
cabido, adarga antiga, rocim fraco, e galgo, corredor.
A Ilíada:
Canta a ira, deusa, do filho de Peleu,
Aquiles, ira funesta, que foi causa de mil dores para os Aqueus, precipitou no
Hades não poucas almas fortes de heróis, e fez dos seus corpos pastos dos cães[3].
Nota-se que no Quixote
quer-se esquecer um lugar que foi “importante” na vida do “herói”. Na Ilíada,
pelo contrário, quer-se lembrar (através do canto) a ira do “filho de Peleu”, a
história de Aquiles, cuja participação na Guerra de Tróia foi decisiva a favor
dos gregos, os então chamados “aqueus”. A Ilíada vai terminar com o resgate e o
funeral de Heitor; a obra-prima de Cervantes, na primeira parte, vai terminar
com o seguinte epitáfio, escrito por Sansão Carrasco, o cavaleiro que derrotou
o Cavaleiro da Triste Figura, e que foi o responsável pelo retorno de Dom
Quixote à razão, e dizia:
Aqui, jaz quem teve a
sorte
De ser tão valente e
forte,
Que o seu cantor alegou
Que a morte não
triunfou
Da sua vida coa sua
morte.
Foi grande a sua
bravura,
Teve todo o mundo em
pouco,
E na final conjuntura
Morreu: vejam que
ventura,
Com siso vivendo louco!
“Morreu... com siso
vivendo louco” esses dois últimos versos expressam, de certa maneira, um resumo
da vida do nosso herói. Dom Quixote não tem a força de Aquiles, em sua “glória
solitária”, na vingativa ira pela morte de Pátroclo, ira esta, sagrada para os
gregos, pois resultará no início da vitória dos gregos frente aos troianos. Dom
Quixote não tem a “glória fraterna”[4] de
Heitor que se sacrifica, desafiando o destino que lhe reservara a morte caso
enfrentasse Aquiles, não hesitou em defender a sua família e sua adorada Tróia.
A glória de Dom Quixote não foi a de nenhum desses dois modelos de heroísmo das
epopéias antigas. A “glória” de Dom Quixote não foi, necessariamente, a de
viver na luta entre o Ideal e a Realidade, a luta de viver como um louco e a de
morrer como um homem, mas a de ser mais real do que nós.
Alonso Quijano não é
apenas personagem de Cervantes, aquele que espelha muito bem o conflito entre
Ideal e Realidade, o que foi uma temática já percebida pela Renascença. A
loucura de um Hamlet ou a loucura de Alonso Quijano são loucuras passageiras,
necessárias, para destruirmos a linguagem e a recriarmos pela leitura. Erasmo
só não conseguiu criar um personagem que Shakespeare e Cervantes levaram
adiante. A loucura de Erasmo é a de uma loucura expansiva “louco é aquele que
se deixa arrastar ao sabor de suas paixões. O homem é tanto mais feliz quanto
mais numerosa são as suas modalidades de loucura” (Roterdam, 1996: 72). Erasmo
ensinou o caminho da conciliação entre o Ideal e a Realidade. Cervantes mostrou
o da libertação através da leitura, da arte, como mais tarde irão mostrar
Schopenhauer e Nietzsche. Quem não é ridículo em demasia?
Conclui-se dizendo que
o Quixote denuncia a prática da má leitura. Lemos muito mal porque se escreve
muito mal. Quixote aristotelicamente expurga os malefícios daqueles livros que
destroem a originalidade e tratam a imaginação como uma inflação da própria
ignorância, no caso as novelas de cavalaria, obras mentirosas como hoje
assistimos a mancheias os livros de auto-ajuda (nada mais quixotesco). O
Quixote representa a noção de que é possível criar uma obra literária original
através da leitura, uma predisposição para uma metaficção, que nem precisaria
desse título, pois a obra mostraria por si a sua condição moldada na linguagem,
e nesta, o leitor (ou o ouvinte) não poderia ficar de fora.
Outra idéia que fica
após a leitura desta inesgotável obra é: Impossível não sentir a ilusão da
justiça[5] e
não se encantar com a única felicidade que nos resta: a da leitura. Aliás, toda
vez que leio Dom Quixote dá-me a vontade de jogar fora metade da minha
biblioteca, inclusive as coisas que escrevo, que até “alguma coisa tem de boa
invenção; alguma coisa promete, mas nada conclui”. Um artista não pode criar
para deformar a realidade ou perpetuar a mediocridade existente como uma doença
que se prolifera, mas para respirar uma esperança, aquela que dorme no fundo da
gaveta à espera da luz, a leitura. A obra de Cervantes só tem a provar a
poderosa função crítica da literatura, agora desta vez calcada na leitura, pois
é só a leitura que colocará todas as camadas possíveis da ficcionalidade em
jogo: autor, narrador, personagens, linguagem, tempo e espaço – e a própria
realidade. A leitura será sempre original, independente até mesmo do mais
inadequado dos textos, à época, as novelas de cavalaria. E mesmo que a busca
pela originalidade se torne uma obsessão ou mesmo uma prisão, só a leitura
poderá libertar o “desocupado” leitor. Ou melhor: são os leitores que constroem
as histórias e não, necessariamente, o escritor[6], principalmente,
a partir do momento no qual as vozes de diversos narradores se fazem ouvir: 1)
o Narrador (anônimo); 2) Cide Hamete; 3) o mourisco
alfamiado, o tradutor.
Mas o que mais me
assusta no Quixote é ver que o destino do homem é para ser lido e que a leitura
é um sonho possível. Um “Código Cervantes”: a leitura como crítica da ficção é
uma luta pela originalidade. Contra esse horror da duplicação das coisas, e
principalmente na linguagem uma malfadada ficção? Existe um personagem de Lewis
Carroll, com o qual gostaria de encerrar, e que podemos comparar com o Quixote,
e aliás, impossível não ver a sombra imperceptível do Quixote no Chapeleiro
Maluco, personagem originalíssimo de As
Aventuras de Alice no País das Maravilhas, no sétimo capítulo, naquele em
que estão reunidos Alice, a Lebre o Chapeleiro e o dorminhoco Caxinguelê,
espécie de roedor parecido com um esquilo...
“Eu digo”, Alice respondeu
apressadamente; “pelo menos...pelo menos eu penso o que digo...é a mesma coisa,
não?”
“Nem de longe a mesma coisa!” disse o
Chapeleiro. “Seria como dizer que ‘vejo o que como’ é a mesma coisa que ‘como o
que vejo’!”
“Ou o mesmo que dizer”, acrescentou a
Lebre de Março, “que ‘aprecio o que tenho’ é a mesma coisa que ‘tenho o que
aprecio’!”
“Ou o mesmo que dizer”, acrescentou o
Caxinguelê, que parecia estar falando dormindo, “que ‘respiro quando durmo’ é a
mesma coisa que ‘durmo quando respiro’!”. (Carroll: 2002, 68).
Um dos mais malucos personagens da
literatura, o Chapeleiro de Carroll, ensina-nos que devemos nos esquivar da
ambigüidade da linguagem. Coisa que, às vezes, os mais sãos não conseguem e nem
os mais hábeis. E quanto ao personagem: todo escritor que não conseguir ser
original – esqueça. É possível que a realidade tenha camadas que a leitura do
Quixote desnudou: se a criação estaria dentro da criação e a leitura estaria
dentro da leitura como uma forma de nos colocar não entre a realidade e a
ficção, mas no saboroso mundo da leitura. Talvez você, adorável leitor, seja
também um personagem de Cervantes. Vamos, pegue O Quixote e leia.
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SAER, Juan José. A moral do Fracasso de Dom Quixote. Trad.: Sérgio Molina. Folha de
São Paulo, Caderno Mais, 23/09/2003.
[1] Professor de Literatura da UFPA, Doutor
em Teoria Literária.
[2] Volto a frisar o artigo de Saer, a
Moral do Fracasso de Dom Quixote. “a obra-prima de Cervantes liquidou a epopeia
e abriu espaço aos personagens problemáticos de Dostoiévski a Falkner e
Chandler”. Folha de São Paulo, Caderno Mais, 23/09/05.
[3] HOMERO, A Ilíada. 2ª ed. Tradução da versão francesa e nota introdutória de
Cascais Franco. Europa-América, Portugal, p. 11.
[4] “Glória solitária” para Aquiles e
“Glória fraterna” para Heitor são duas fórmulas cunhadas por Cascais Franco
para a nota introdutória de A Ilíada,
2ª ed, Europa-América.
[5] DANTAS, San Tiago. Dom Quixote. Um Apólogo da Alma Ocidental. Rio de Janeiro : Tempo
Brasileiro, 1964. p. 17: “Esse homem sem sorriso, esse modelo de gravidade,
essa regra de comedimento e de pudor, cujas ações jamais deixaram de ter um
móvel justo, ainda que ilusório”.
[6] Cf. Ermelinda Ferreira “A Literatura do
Esgotamento e a Literatura da Plenitude: O Pós-Modernismo na Visão de John
Barth” http:/www. plataforma para a poesia, p. 05.


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