Pular para o conteúdo principal

A Musa da revista Orpheu



                                              Benilton Cruz

O texto a seguir pretende explicar sobre o momento histórico ímpar em torno do periódico que haveria de mudar para sempre a poesia em Portugal. O propósito maior é mostrar que, na primeira edição, há uma “Musa da Orpheu” que por analogia assegura um lugar em correspondência entre o desenho da capa, do artista José Pacheco e os textos ao longo da revista. Deixaremos a ortografia da época por uma questão importante: a estética da época, na qual deixa falar a forma e o conteúdo em um todo. 
O objetivo é rever a interação de literatura e artes plásticas.

A revista Orpheu surgiu praticamente em Copacabana, como diz a professora Teresa Rita Lopes, especialista na obra de Fernando Pessoa, ao se referir ao primeiro número, delegado ao jovem português Luiz de Montalvôr, recém-chegado do Brasil, país de outro então diretor do periódico, o carioca Ronald de Carvalho, cujo nome e endereço aparecem na folha de rosto da primeira edição, saída em fins de março de 1915.
Todavia, mais do que se imaginar a primeira edição como um projeto de intercâmbio luso-brasileiro, o que sedimentava a revista, dentre outras coisas, era o contexto muito heterogêneo a acatar propostas do Simbolismo neorromântico ou de Simbolismo modernista. A revista foi um “êxito de escândalo”, principalmente, a recepção do poema “16” de Mário de Sá-Carneiro e da Ode Triunfal de Fernando Pessoa, textos que abrem o Primeiro Modernismo Português.
 No contexto pessoano: a “pátria”, como língua portuguesa, necessitava, por assim dizer, ser desfocada de um “beira mar” inglório e injusto e ser protagonista de sua própria trajetória estética. Para essa tarefa, há um marinheiro novo no cenário estático português. E às costas desse navegador, capitão audaz da Ode Triunfal, comandante que, à popa, dessa frágil galé, a revista que ora desponta, reacende a verdadeira vocação portuguesa de abrir novos mares, novas terras, levando à proa o idioma de Camões.
A revista é lançada em 1915, dez anos depois do regresso de Fernando Pessoa que em 1905, em sua Lisboa de sempre, a cidade que haveria de receber o poeta a crente de um “não evoluo, viajo”, espécie de disposição anímica nunca abandonado por Pessoa ao longo de sua vida. O poeta havia também recém-criado, em 1914, os seus principais heterônimos, a tríade inesquecíveis, de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, o “grupo” mais conhecido da poesia portuguesa.
Assim, o poeta plural, agora, cem anos depois, em 2015, comemora o centenário da publicação da revista Orpheu, o periódico que, mesmo em apenas dois volumes (e um terceiro natimorto), haveria de marcar a capital portuguesa como o epicentro de uma memorável efervescência literária, a ser chamada pelo próprio poeta de a “Escola de Lisboa”.
Pessoa carregava consigo uma característica adorava os reptos, como em Portugal são conhecidos os desafios, afinal o seu desejo era o de superar Camões, e assim, haveria de ser o supra-Camões, este infausto tormento, que o leva, todavia, a conviver com outros reptos, evidentemente identificados em seus heterônimos: Ricardo Reis a superar Horácio; Álvaro de Campos superar Walt Whitman e os futuristas, e Caeiro, o mestre, haveria de ser o mestre de todos, o insuperável – na verdade – todos eles inspirados em Cesário Verde como o próprio Pessoa confessa, mais tarde.
Não há certidão de nascimento do moderno sem passar pelo crivo da consciência da negatividade. Superar Camões significava conviver com a sombra do Velho do Restelo, o personagem de Os Lusíadas, aquele que se põe contra o envio da frota mercantil ao distante tendo o inimigo à porta. Esse engenhoso espírito crítico, alegoria da ala descontente a população a defender um Portugal a olhar para suas terras e não para os mares desconhecidos, acompanha de certo o Pessoa crítico da República recém-instaurada e de uma país ainda sob o o efeito do Ultimato inglês, o que obrigou o governo a ceder as colônias de África ao imperialismo inglês.
Por conta disso, não seria estranho acolher as novidades vindas de Paris e não de Londres. A mistificação vivida durante o Simbolismo-Decadentismo afastava-se das raias clássicas e abria novos portos sob a bruma cerrada da passagem do século. O próprio Pessoa haveria de entender o Decadentismo como Modernismo e assim como muitos outros “novos” que à época ainda enxergavam a essa “novidade” francesa muito atrasada em Portugal. 
O moderno por si, puro, despido da aura do passado, regido pelo violento pulso da fratura, essa dolorosa palavra, a que será o mote da modernidade, aparece em sua pluralidade plena, todavia, só em Álvaro de Campos, principalmente em Ode Triunfal, o último poema da primeira edição da Orpheu.
É possível ler nas duas edições, as que atingiram o leitor e isso é o que importa, uma proposta revisionista da literatura praticada até então em Portugal, um olhar sui generis, de nomes a serem escritos para sempre na memória do recinto criativo da língua portuguesa. Não há novos rumos sem desprezar o passado que será sempre novo quando existe uma tradição, aquela que fala de autonomia, à luz de Viriato, Bandarra,  António Vieira, Camões. Não há certidão de nascimento do moderno sem passar pelo crivo da consciência da negatividade.
A questão de Modernismo, termo muitas vezes usado como síntese desse conglomerado de movimentos artísticos, proclamados à luz de manifestos e retumbante participação do público, principalmente os das Vanguardas Históricas, situado entre 1905 a 1930, a provocar renovação de todas as linguagens estéticas, nem sempre pode ser aplicado ao surgimento da revista em Portugal.
Onde está o Modernismo nas páginas de Orpheu? Resposta complicada pois o verso que se escreve primeiro reflete todo o seu arredor de esforços em se concretizar o projeto, esse mesmo que atinge Lisboa e Rio de Janeiro, capitais em comum com a língua portuguesa e sua história de travessias, mar português, com certeza, minados de perigos e de raras vitórias no além- mar. Esse trânsito de ideias, todavia, entre seus agentes culturais, de certa forma, caracteriza no contexto da primeira metade do século XX como mundo movimentado, então por via de navios mais seguros à jornada de viagens destituídas das antigas auras de mistério, percurso entre os continentes, indício de Modernismo, ora pois, já que essa troca de ideias, permutas de obras e correspondências aceleram a tese de que o Modernismo não foi a pé aos grandes centros culturais.
Há muito mais de um Pessoa e seu Interseccionismo, Sensacionismo e Pauismo, coisas inerentes à poesia então em marcha na trajetória do poeta e já posto em prática na revista, acima por exemplo do fato de Opiário ter sido escrito “No canal de Sués, a bordo”, como diz o heterônimo Álvaro de Campos, algo pertinente ao momento modernista. 
Quero provar que o Modernismo não pode ficar acima da genialidade de Fernando Pessoa e de Mário de Sá-Carneiro. Os dois nomes tem outras preocupações e outros objetivos no contexto. Em primeiro plano, a revista vai por outro lado, ou até mesmo na contramão, quando é respeitado o momento histórico. Não dá para empregar a mesma fórmula de Modernismo ao ambiente lisboeta quando do surgimento da Orpheu, mesmo quando a “introducção” do primeiro número nos fala em “essencia de vida e quotidiano”, a tal quotidianidade tão aclamada como nova temática, algo também peculiar ao Modernismo.
Contudo, a primeira marca a ferir a revista de uma portugalidade trans-temporal está logo adiante no texto introdutório, exatamente quando as “Puras e raras suas intenções como seu destino de Beleza é o do Exílio”, essa mesma fatalidade, aliás, muito propícia ao destino de vultos consagrados da literatura portuguesa como Camões, Vieira, e Bocage, assinala ao que veio a Orpheu, consciente ou inconscientemente, reposicionar-se entre eles.  
Adiante um trecho nos remete a uma “procura esthetica de permutas: os que nos procuram e os que nós esperamos…”, afinal uma revista que se dá a conhecimento público está a fazer ciência de sua realidade enquanto periódico: está aberta ao diálogo e à crítica. Mas, quando uma publicação se propõe a chocar, a questão tem a ver com a recepção, como um termômetro a medir a rejeição e a aceitabilidade.
Por conta da empatia do público, todavia, podemos ver algo mais inovador. Por assim dizer, Orpheu seria modernista por esse lado, e talvez o único ao longo de todo o acontecimento em torno do aparecimento da revista. De acordo com Modris Eksteins, autor de A Sagração da Primavera, livro que aborda o efeito retumbante da estreia em Paris do balé homônimo de Stravinsky, em 1913, a causar o primeiro registro então de um público dividido entre aplausos e vaias, é algo que passa então a caracterizar o Modernismo que vive de opiniões, que confronta, e segrega. Esse desconforto atinge todas as estreias de propostas renovadoras ou a simplesmente marca um outro jeito de fazer arte diante do habitual. Por essa ótica, Orpheu é modernista: é hostilizada e aclamada ao mesmo tempo.
Contudo, no restante, até chegarmos em Opiário e Ode Triunfal, dois últimos poemas da revista, nada há de novo. Todavia, Orpheu não precisa do Modernismo para se autoafirmar. Mais do que isso, ela brota condizente com uma abertura à reflexão estética por conta do seu efeito no público sem deixar de por em marcha a sensorialidade entre as artes o que alavanca um Portugal ainda simbolista e decadentista.
Podemos dizer que por analogia, a capa da primeira edição, assinada por José Pacheco, conexa com a leitura entre as artes, algo típico do início do século XX, parecendo, no fundo, ser uma iconologia posta em prática a partir dos poemas “Nossa Senhora de Paris” e “Distante Melodias” ambos de Mário de Sá-Carneiro: “E a noite cresce agora a desabar catedrais…/Fico sepulto sob círios -/ Escureço-me em delírios, /Mas ressurjo em Ideais…” do primeiro, e “A luz – anseios de Princesa nua…// Balaústres de som, arcos de Amar//Zimbórios-panthéos de nostalgias…/Catedrais de ser-Eu”, do segundo, podem ser lidos, na representação da pequena figura feminina nua de vasta cabeleira entre os círios ardendo diante de um fundo azul, a se entender o céu, e uma dispersa paisagem negra delineando montes ou uma cadeia de montanhas.
Há uma “donzella”, essa Musa de Orpheu a surgir da leitura da própria revista. Mais adiante, o trecho “A vida é uma Princesa dolorosa/ no seu castelo de rubis e opalas, tangendo ao poente em harpa silenciosa/ uma agonia de almas de falas…/” de Ronald de Carvalho, conjuntamente com a presença de mais  “donzellas” em O Marinheiro, drama estático, onde uma “donzella” está sendo velada por outras três, o que reforça ainda mais a presença de um vulto da Musa de Orpheu, essa figura frágil, tênue e baça que, ao centro e de braços abertos, no desenho de José Pacheco, fulgura nos versos da primeira edição, e que de certa maneira prenuncia o sopro de uma curta existência.
Essa Musa, delicada e fina, continua, quando se enriquece do drama pessoano como uma tela, o quadro visível daqueles versos a questionar o sentido da vida, exatamente a segunda “donzella”, a desejosa de “ouvir musicas barbaras”, a que fingia-se morrer na infância como “estatua de anjo para que nunca mais ninguem olhasse” – a que – para espanto da terceira “donzella” a que enceta: “As vossas frases lembram-se a minha alma...” demonstra que é possível pintar um retrato de uma imagem fugaz construída em versos ao longo da revista exatamente como o singelo “Capa desenhada por José Pacheco”.
Mais representatividade da Musa desponta adiante com os treze sonetos de Alfredo Pedro Guisado, nas imagens do primeiro poema, o “Adormecida” cujos versos, literalmente, como laivos irregulares da diretriz simbolista, ressoam um devaneio a evocar um “Egipto” clássico onde emerge uma mulher de “braços em cruz” de certa forma, a lembrar o desenho da capa, exatamente, acrescentado agora dos longos cabelos negros sedosos, da bíblica representação da sedutora, erótica e fatal, e “morena” Salomé, a que dança entre círios, a mulher que é tema de outros três sonetos desse mesmo poeta.
José de Almada-Negreiros também não fica por menos, suas narrativas curtas, coloridas, herméticas e sensuais, desenham com palavas uma “Colombina” em “CIÚMES” e a sua Eva de o “ECHO”, a outra misteriosa voz a chamar por Adão, daquela história que todos já sabem do final, junta-se a outra forma feminil, a da amazona negra, do encantado “SÈVRES PARTIDO”, a “bella como o sol e triste como o luar”, a “pastora de galgas”, “Figura negra muito esguia”, assim como em “MIMA FATAXA”, onde um homem se apaixona por uma cigana, “Ella”, a “rainha loura senhora de todas as ciganas”, “feiticeira afiando as tranças nos lábios molhados da saliva”, a “mais bella” que desperta o desejo “como em sonho se desenha uma mulher para nós”.
Mais adiante, o poeta assinala a “silhueta franzina de tragica sonambula” de “A SOMBRA”, ou “a minha irmã gemea que nasceu sem vida” de “CANÇÃO DA SAUDADE”, a fulgurar o amor pelas “silhuetas indecisas das mulheres que vivem em meus sonhos”. E em “RUINAS”: “princezas mortas”, “netas fidalgas” e a lua, “a contar” sua lírica história antiga e sintética de um romance trágico dos tempos das galés e de castelos onde “Ardem cirios”, ou as pastorinhas de “PRIMAVERA” e de “CANÇÃO”, ou mesmo a “gueisha” de “A TAÇA DE CHÁ” fecham a sequência mais excitante dessa Musa de Orpheu.

Resultado de imagem para revista orpheu

Capa da Revista Orpheu, lançada em Lisboa em 25 de março de 1915.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

UM DIA DE FESTAS - POR ADALBERTO MOURA NETO

Recital em frente à casa onde nasceu o poeta Antônio Tavernard, em Icoaraci. Hoje se concretiza o sonho de reerguer este espaço como a merecida Casa do Poeta, na visão de Adalberto Neto e endossado pelo autor do livro Moços & Poetas. Publico hoje, na íntegra um artigo de um grande agitador cultural de Belém, em especial de Icoaraci. Trata-se de um relato sobre uma justa homenagem àquele que é considerado como um dos maiores poetas paraenses: Antônio Tavernard.  O que me motiva esta postagem - e foi a meu pedido - é que a memória cultural do nosso estado vem de pessoas que fazem isso de forma espontânea. O Adalberto Neto é aquele leitor voraz e já um especialista no Poeta da Vila - e isso é o mais importante: ler a obra de Tavernard é encontrar: religiosidade, Amazônia, lirismo, musicalidade romântico-simbolista, um tom épico em seus poemas "em construção" e um exímio sonetista, e eu diria: Tavernard faz do soneto um minirromance.  Fico feliz pelo Adalberto Neto, o autor d...

AO CORAÇÃO DO MAESTRO (PEQUENA CRÔNICA PÓETICA)

O coração do poeta encontrou o coração do maestro em outubro de 2023 e desde então conversavam como se fossem dois parentes que fizeram uma longa viagem a rumos diferentes e que se reencontravam de repente. O coração do maestro ensinava; o coração do poeta ouvia. Quem ensina é o coração; quem aprende é também o coração. Dois irmãos. - Um coração para duas mentes diferentes. O coração do maestro regia as histórias, as lendas, os mitos, a ópera, a música; o coração do poeta dizia: sonho com o verso, o certeiro acorde, do maestro como ópera e como canção, como rima, como melodia, como ode. E alegria. Era muita cultura, para muito mais coração. Era quase todo dia, um projeto, uma ideia, uma música, um hino, o coração do poeta escrevia: "Homens livres e de bons costumes/ irmãos do espírito das letras/ levantai a cantar a Glória do Arquiteto Criador/ Homens Livres e de bons costumes/ Irmãos do espírito das Letras/ Aprumai a voz ao coração/ que a pena é mais forte que o canhão/ Às Letras...

A ORIGEM DO FOGO — LENDA KAMAYURÁ

    Lenda colhida pelos irmãos Villas Boas. Posto Capitão Vasconcelos à margem do arroio Tuatuari, em 16/06/1955.    Na Amazônia, todos os povos indígenas têm lendas sobre a origem do fogo. Elas diferem entre as etnias, embora o processo seja o mesmo: uma flecha partida em pedaços e uma haste de urucum.  Das lendas que ouvimos sobre a origem do fogo, a que mais nos pareceu interessante foi a narrada por um velho Kamayurá.                                                     “Canassa — figura lendária, caminhava no campo margeando uma grande lagoa. Tinha a mão fechada e dentro, um vaga-lume. Cansado da caminhada, resolveu dormir. Abriu a mão, tirou o vaga-lume e pôs no chão. Como tinha frio, acocorou-se para aquecer à luz do vaga-lume. Nisso surgiu, vindo da lagoa, uma saracura que lhe disse: ...