Pular para o conteúdo principal

O FILÓSOFO PENSA EM SEU AUTOMÓVEL


O filósofo pensa em seu automóvel. Pensa ao dirigir, mas não se distrai. Pensa e dirige. Tudo passa correndo em sua mente. O tempo e o espaço. A matéria. A dúvida. O conhecimento. O ser. E novamente a dúvida que parece ser o ser.
Dentro de um ônibus talvez, um pensamento fulminante, um jato de revolta pode irromper com mais frequência. Porque por onde se olha tudo é uma revolta só. Nada mais brasileiro do que filosofar dentro de um ônibus. Nós pensamos pelo desconforto. Ao contrário dos que pensam junto à lareira, ao queijo e ao vinho. As filosofias que nascem do conforto são válidas, mas não levam ao conforto. Sabemos que é impossível pensar sem o mínimo de dignidade.
A cidade tornou-se um círculo vicioso onde o tempo dá voltas pelo mesmo lugar. Nada muda e tudo permanece do jeito que está. É impossível pensar no que não muda. A cidade cresce para cima e cria limo as paredes. A periferia amontoa-se em silencioso desastre humano. A vida vale uma jogada no bicho ou a esperança nas cartelas premiadas do destino. A televisão virou roleta mágica nos programas de auditório no domingo sem Deus.
O sol não aquece e a lama dos buracos derrama-se no caminho do filósofo. O carro com a gasolina na reserva. Ele desvia de um pau enfiado no meio da rua. É uma invenção do povo, uma maneira de sinalizar a cratera rompida pela chuva e pelo descaso.
É preciso continuar com a vida. É preciso continuar com a morte.
O filósofo pensa nesses parentes próximos, e também no resto da família: no ódio e no amor, no céu e na terra, no fogo e no frio, na alma e no corpo, no contracheque e na edição de bolso sobre Heidegger, nos políticos, na injustiça divina, na casa murada cheia de grades e pit bulls nos jardins, nas garatujas do anônimo pichador. No trânsito nervoso que o leva para casa, o filósofo passou por todos os perigos da existência. Tudo influi ao pensamento, e a destreza da vida passa pelo volante. Não basta chegar em casa e tudo esquecer. Para filosofar em alemão ou em português, no conforto da lareira e do vinho ou na habilidade de um volante ao trânsito de tudo: a filosofia é isso e um pouco mais.
Para filosofar basta existir o risco, a vida e a morte, lado a lado, em uma exigência fatídica.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

UM DIA DE FESTAS - POR ADALBERTO MOURA NETO

Recital em frente à casa onde nasceu o poeta Antônio Tavernard, em Icoaraci. Hoje se concretiza o sonho de reerguer este espaço como a merecida Casa do Poeta, na visão de Adalberto Neto e endossado pelo autor do livro Moços & Poetas. Publico hoje, na íntegra um artigo de um grande agitador cultural de Belém, em especial de Icoaraci. Trata-se de um relato sobre uma justa homenagem àquele que é considerado como um dos maiores poetas paraenses: Antônio Tavernard.  O que me motiva esta postagem - e foi a meu pedido - é que a memória cultural do nosso estado vem de pessoas que fazem isso de forma espontânea. O Adalberto Neto é aquele leitor voraz e já um especialista no Poeta da Vila - e isso é o mais importante: ler a obra de Tavernard é encontrar: religiosidade, Amazônia, lirismo, musicalidade romântico-simbolista, um tom épico em seus poemas "em construção" e um exímio sonetista, e eu diria: Tavernard faz do soneto um minirromance.  Fico feliz pelo Adalberto Neto, o autor d...

AO CORAÇÃO DO MAESTRO (PEQUENA CRÔNICA PÓETICA)

O coração do poeta encontrou o coração do maestro em outubro de 2023 e desde então conversavam como se fossem dois parentes que fizeram uma longa viagem a rumos diferentes e que se reencontravam de repente. O coração do maestro ensinava; o coração do poeta ouvia. Quem ensina é o coração; quem aprende é também o coração. Dois irmãos. - Um coração para duas mentes diferentes. O coração do maestro regia as histórias, as lendas, os mitos, a ópera, a música; o coração do poeta dizia: sonho com o verso, o certeiro acorde, do maestro como ópera e como canção, como rima, como melodia, como ode. E alegria. Era muita cultura, para muito mais coração. Era quase todo dia, um projeto, uma ideia, uma música, um hino, o coração do poeta escrevia: "Homens livres e de bons costumes/ irmãos do espírito das letras/ levantai a cantar a Glória do Arquiteto Criador/ Homens Livres e de bons costumes/ Irmãos do espírito das Letras/ Aprumai a voz ao coração/ que a pena é mais forte que o canhão/ Às Letras...

A ORIGEM DO FOGO — LENDA KAMAYURÁ

    Lenda colhida pelos irmãos Villas Boas. Posto Capitão Vasconcelos à margem do arroio Tuatuari, em 16/06/1955.    Na Amazônia, todos os povos indígenas têm lendas sobre a origem do fogo. Elas diferem entre as etnias, embora o processo seja o mesmo: uma flecha partida em pedaços e uma haste de urucum.  Das lendas que ouvimos sobre a origem do fogo, a que mais nos pareceu interessante foi a narrada por um velho Kamayurá.                                                     “Canassa — figura lendária, caminhava no campo margeando uma grande lagoa. Tinha a mão fechada e dentro, um vaga-lume. Cansado da caminhada, resolveu dormir. Abriu a mão, tirou o vaga-lume e pôs no chão. Como tinha frio, acocorou-se para aquecer à luz do vaga-lume. Nisso surgiu, vindo da lagoa, uma saracura que lhe disse: ...