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A RIQUEZA ESPIRITUAL DA AMAZÔNIA: O MARIRI E A CHACRONA (O MARECHAL E A RAINHA)

A Amazônia é rica em tantas coisas conhecidas, como o seu minério,o petróleo, a fartura de água e peixes, a sua fauna, a sua flora, e porque não na sua religiosidade? A riqueza espiritual amazônica é outra face de uma das regiões mais enigmáticas do planeta. E a história da Ayahuasca é a prova de que temos ainda muito a aprender sobre a parte mais verde do planeta.
Diz um relato do Mestre Gabriel, o fundador da União do Vegetal, um dos núcleos religiosos em torno dessa bebida sagrada, que Ayahuasca - ou melhor Oasca, segundo ele - era uma conselheira de um rei inca, encantado com a sabedoria da nobre senhora, e que quando ela morreu, esse mesmo rei viu nascer uma planta em cima do túmulo da inesquecível conselheira. 
Chamado os seus melhores marechais para provar do chá feito das folhas desse arbusto, um deles morrera logo após ingerir a bebida. O nome desse marechal era Tiauaco que foi sepultado ao lado do mausoléu da Ayahuasca. 
Passado um tempo, um cipó misterioso grelou em cima do túmulo do valente marechal e se entrelaçou com as verdes folhas do arbusto nascido sobre os restos mortais da conselheira, da mulher sábia que se transformou em uma Rainha espiritual para aquele líder e aquele povo. 
O rei, então, resolveu unir em um mesmo chá o cipó e a planta: o resultado foi o nascimento da famosa bebida, o vinho das almas, o vegetal, o Daime, na versão do Mestre Irineu, outro pioneiro na disseminação dessa bebida a partir do Acre, parte ocidental da Amazônia brasileira.
Em primeiro lugar a Ayuahasca não é um chá que se bebe quente e dando “beijos” na borda de uma xícara. É uma bebida forte com cheiro áspero e gosto difícil de se descrever, uma vez que as suas características fogem ao nosso paladar: imaginem um líquido viscoso e de cor de um marrom-alaranjado. 
O poder do vegetal começa, de cara, por via dessas aspectos. É amargo, viscoso, difícil de tragar, e parece carregar todo o gosto de uma estranha clorofila condensada de tudo aquilo que se possa sentir dos vegetais – acrescentado de um verde sabor da espiritualidade da Amazônia andina e florestal.
E o efeito da bebida é uma viagem astral. As luzes se abrem e um caminho espiritual próprio é percorrido. Mandalas de luz limpam as vaidades e orgulhos, e em alguns casos o efeito emético é notado: vontade de urinar e defecar, a "limpeza visceral" toma conta do daimista, estado de purificação que pode se estender para lágrimas, água a escorrer pelo nariz, e a vontade de vomitar. 
É algo novo que pede para entrar e coisas velhas e doentias que têm que sair, ou melhor: nada de bom pode entrar se o mal não sair. Há uma sensação de queda da pressão sanguínea - a "Força" te deixa "fraco" e é a hora das mirações. 
Vais conhecer a verdade. A tua verdade.
E cada um pode ver o seu passado e seu futuro, e decifrar as mensagens visuais deixadas, verdadeiros quadros imagéticos e pessoais da vida espiritual. 
Assim, as imagens de vidas passadas assomam e diante de tais cenas é importante rever e se posicionar no fluxo temporal dos ciclos cármicos. A Ayuahasca é reencarnacionista, ou seja, ela te ensina que tens uma longa trajetória espiritual da alma eterna em dimensões que precisamos reconhecer e reviver para conhecemos quem realmente somos. E aqui cada um refaz o seu caminho na luz da verdade. 
A Ayuahusca nos ensina a cair do pedestal do ego e a sermos mais humildes, e lembrarmos que este mundo ainda tem perguntas – diante de um tempo no qual todos têm as respostas prontas. 
Eu costumo dizer que a linha do Mestre Irineu, e seus hinos bailáveis cantados ao longo do ritual com a bebida, nos brinda com uma Poética da Luz, e a do Mestre Gabriel nos alimenta de uma Poética do Equilíbrio, enquanto que a do mestre Germano Guilherme nos doa uma exuberante Poética do Êxtase. 
E essas três linhas conjugam, portanto, uma religião estritamente poética, amazônica, musical e corporal da dança que se harmoniza com o sentido universal da espiritualidade (todos os deuses transitam nessa viagem astral e todos podem ser visíveis), por isso, todas as religiões são bem-vindas no recinto do Daime ou do Vegetal. O chá nos ajuda a enxergar que há outros mundos e nós somos apenas um deles, talvez o mais enfraquecido pelo egoísmo e outras causas de sofrimentos morais e físicos.
Um exemplo da Poética da Luz é este hino composto pelo Mestre Irineu. Observem que a palavra “retinida” é a mesma usada pelos pescadores quando estendem a rede e ela tem que ficar em uma posição tal que não fique nem muito tesa e nem muito folgada. 
Retinida é a exatidão. Tempo de capturar o peixe ao sabor das correntezas, no exemplo perfeito de como a Palavra é o Verbo que ensina a capturar valores sagrados ao espírito. Assim, é o mestre da Luz, um ser superior que nos revela que a voz também é essa rede a capturar o Amor oriundo da luz astral do Pai e da Mãe divinos.

EU CANTO NAS ALTURAS
(Mestre Irineu)

Eu canto nas alturas,
E a minha voz é retinida
Porque eu sou filho de Deus
E tenho a minha Mãe querida.
(bis)

A minha Mãe que me ensinou
A minha Mãe que me mandou
Eu sou filho de Vós
Eu devo ter Amor
(bis)

Com Amor tudo é Verdade
Com Amor tudo é certeza
Eu vivo neste mundo
Sou dono da riqueza
(bis)

A minha Mãe é a lua cheia
É a estrela que me guia
Estando bem perto de mim
Junto a mim é prenda minha
(bis)

A riqueza todos têm
Mas é preciso compreender
Não é com fingimento
Todos querem merecer
(bis)

Mais abaixo, um exemplo da Poética do Equilíbrio do Mestre Gabriel, cujo grande ensinamento está na lealdade à Palavra, ao que dizemos e prometemos, segundo o mestre Eloi, estudioso da mensagem do fundador da União do Vegetal, e que coordena a Comunidade Tonantzin, em um sítio em Benevides, no Pará, junto com a sua esposa, a mestra Flori. A existência é saber controlar essa barquinha que é a vida. E esse hino nos ensina que viver é marear, é correr os riscos dos altos e baixos, e termos o nosso próprio leme e pilotar com as próprias mãos o caminho da retidão e integridade.

A minha barquinha
Que no mar me guia
A onda levava
E o vento trazia

A minha barquinha
Que no mar me guia
A onde levava
E o vento trazia

Gentil marinheiro
Vamos navegar
Na minha barquinha
À luz do luar

Equilibra o barco marinheiro
Vamos atravessar
Equilibra o barco marinheiro
Não deixa a onda embolar

Equilibra o barco marinheiro
Vamos atravessar
Equilibra o barco marinheiro
Não deixa a onda embolar

Segura o leme marinheiro
Vamos aportar
Mareia, quando mareia
Com a agulha de marear


Segura o leme marinheiro
Vamos aportar
Mareia, quando mareia
Com a agulha de marear


E, por sua vez, o Mestre Germano Guilherme nos presenteia com o Êxtase. É um “primor” como ele mesmo diz. A “casa da verdade” é o amor, o brilho que expande toda criatura ao encontro com Deus.

Do Sol Vos Nasce A Luz
(Germano Guilherme)

Do sol vos nasce a luz,
neste azul que faz pasmar.
Vós sois a lua e sois Rainha,
Vós sois o brilho, Vós sois o brilho
Vós sois o brilho e flor do mar.

Eu vou seguindo nessa estrada,
nesta casa chegarei.
Esta é a casa da verdade
que neste mundo, que neste mundo,
que neste mundo eu encontrei.

No coração trago a firmeza e no Divino,
nas alturas, esta é a casa da verdade,
é um primor, é um primor,
é um primor de formosura.

E eu, por meu turno, sob o efeito do "vinho das almas", compus, modestamente, um hino, solene, que vai abaixo, como gratidão a esse misterioso chá, bebida sagrada, que nos ensina humildade e autoconhecimento. Foi a minha maneira de agradecer ao Mariri e à Chacrona, ao Marechal e à Rainha, esse belo romance astral que nos fortalece na difícil jornada de sermos humanos - e nessa aventura, a Amazônia nos dá um caminho, iluminado de verdes esperanças:

Minha Rainha
Minha Rainha
Meu Marechal

Minha Rainha
Minha Rainha
Meu Marechal

Abra esse caminho de Luz 
E expanda o Seu Amor

Minha Rainha
Minha Rainha
Meu Marechal

Minha Rainha
Minha Rainha
Meu Marechal

Onde há o Amor
Não existe mais o mal

Minha Rainha
Minha Rainha
Meu Marechal

É de Luz e de Amor
O santo Casal

Minha Rainha
Minha Rainha
Meu Marechal

E leve todo o mal

Minha Rainha
Minha Rainha
Meu Marechal

03.02.2018

Benilton L. Cruz 



O cipó Mariri e a folha da Chacrona


A Ayahuasca é um nome quíchua de origem inca, que denomina uma bebida sagrada originariamente amazônica. No "feitio", ou seja, no preparo desse chá sagrado, é necessário cortar e bater o Mariri, desatar os nós do cipó, o de nome científico Banisteriopsis Caapi (o também chamado Jagube), depois se deve ferver junto com as folhas de um arbusto conhecido como Chacrona ou Rainha, cientificamente, a Psychtria Viridis.
A recomendação dos mestres, dentre outras, é: homens sempre de calça comprida e as mulheres de saias também compridas, e a elas ficam reservadas algumas tarefas como a recolha da Chacrona e aos homens a recolha, lavagem, do Mariri e o preparo do chá em si. O respeito à tradição é o comprometimento com o preparo da bebida sob uma aura de espiritualidade e bons pensamentos. Essas orientações derivam dos ensinamentos do mestre Raimundo Irineu Serra, o Mestre Irineu, fundador da Doutrina do Daime, no início do século XX, no Acre, na Amazônia ocidental brasileira. O culto religioso é dirigido especificamente ao autoconhecimento, sob o ritmo de instrumentos musicais como os maracás e chama a atenção a forte musicalidade dos hinos que geralmente abordam ensinamentos espirituais.

Toda essa atividade requer naturalmente muita lenha, de preferência de árvores próximas às plantas necessárias ao chá. Deve-se respeitar ninhos, pássaros e insetos. E novas árvores devem ser plantadas, o que mostra que na essência do Daime há o respeito ao meio ambiente.
As fotos acima são na Comunidade Tonantzin, em Benevides, PA, espaço de acolhida em torno do preparo, comunhão e acompanhamento após a ingestão da bebida.





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