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ALÇAR, ALVOR (seleção de poemas publicados de Benilton Cruz)

                    

                       Prólogo


A natureza pode nos formar como ser, mas é com a arte, como diz Schiller, que nos tornamos humanos - e toda arte é uma prova de nossa superação, uma prova ou visão do futuro, diria Oscar Wilde.
O humano e o futuro estão na arte. Especificamente coube a demiurgia à poesia, desde a profunda cosmogonia dos mitos à musical e subjetiva oração mais solitária guardada em um caderno, uma gaveta, um livro, uma tela de computador.
Escrever é sempre abrir novas fendas e ferir outras linguagens, mergulhar com o parco fôlego que nos alenta uma voz que alinha um acorde apenas. Escrevo como sonda e como senda: abrir, sorver, umedecer, provar, perscrutar e tornar a revolver.


                            PARA QUE NÃO CANSES

Isto é para que não canses
de procurar o que parece não                                       existir

Isto é para que não chores
porque somos dos sonhos
que só existem com a memória

Isto é para que não temas
os teus passos na escuridão
o teu sorriso franco de estrela.                                   miudinha
e o teu mais novo abrigo
que repousa em meu peito

Do livro Aurora que vence os tigres, 1996.
 
                 

   Todo poema, con el tiempo, es una elegía                                                   Jorge Luis Borges

O RIO, o domínio da calma
O espelho, a elegia do tempo
guardada em movimento
                      quantos em tua                                    beleza
                 passaram

O mergulho do sol
te apossou do silêncio
de aves que não voam

Azulidão e memória
                      : o metal da efígie

O sono das águas
                      te protegerá



 Do livro Aurora que vence os tigres, 1996.



                            Quarta ou quinta-feira, 21,
                       outubro indefinido

Toda carta de amor se escreve na cama assim como a poesia depois de Breton e não adianta cortesia se toda carta de amor é ridícula quando se tem um Pessoa como leitor: Ana, Mileva, Milena – a lida terapêutica da escrita tem que ser à mão no alisar do papel na branca memória das palavras e seus frios anéis da fala. Assim, entendes meus erros, pelo menos temos algo em comum o medo das andorinhas num canto do coração para arder o papel e na pressa de ontem e hoje são iguais os telegramas lidos à mão - tu te repartes em frases curtas lapidadas de computador como o Max queria e deixas sobre a mesa para o vento fixá-las no ar.


Do livro Aurora que vence os tigres, 1996.                    

       


UMA DAS RAZÕES da árvore
é a semente

uma das razões do homem
é a linguagem

uma das razões do ar
é a palavra

uma das razões da palavra
é a palavra


     Do livro Aurora que vence os tigres, 1996.



       DE ABRIL

    Comunico abril às coisas do horizonte:
                                           Max Martins

Perdoa-me, as palavras voam, e não sei onde está a segurança do pouso.
Algum lugar é um verso. Algum verso, não.

Perdoa-me, a solidão espera
e a memória ainda não decide.
Algum sentido a vida tem. 
A grande luta da palavra.

Um saber de música, o teu nome, a linguagem do sopro,

               nenhum sentido de nuvem


 – O universo todo neste minuto em que me deparo – por nenhum véu que me alce a tua solidão no trajeto das folhas de um abril em que te busquei o coração no lúmen da alma, um segredo
                                                               perfume.

O próprio temor que escreve na tua mão nua uma palavra uma.
                            O parênteses sem asas
                             – as aspas de nada,
                                a casa outono,
                                      o poema

                                                       
                    Do livro Aurora que vence os tigres, 1996.




Não valem versos!


Tem que sangrar a voz,

arrumar a casa,

estar atento ao corpo,

falar como uma árvore,

extrair o grito da pedra,

arranhar o musgo.

É este o trabalho do poeta:

o entusiasmo

é a sua tarefa.
                              

Do livro “Balada do Sol & da Lua”, Antologia
O Livro da Malta de Poetas Folhas & Ervas, 1999.




     EU TE ENSINO A SOLIDÃO

Eu te ensino a solidão
para ficares completa
não aqui, no poema - mas onde
a palavra te guarda e
te revela uma palavra tua – aí, onde
não aprendeste a dominar
os ventos e só a escrita perdura
como uma eternidade
na dobra do papel. Sim,
saberei te decifrar como
um espelho ou como uma espada,
não outra trégua. Só a tempestade
de erguê-la e dizer-te:
assim começa ou assim termina.

   Do livro “A Torre de Hölderlin”, Antologia Luz, 2004.




     SÓ OS MORTOS

     Hay diferentes maneras de estar muerto
                                      VICENTE GERBASI


Só os mortos estão seguros de si
Só os mortos caminham para a certeza
Só os mortos estão parados no tempo
Só os mortos não reclamam
   Só os mortos sabem se repetir



Do livro “A Torre de Hölderlin”, Antologia Luz, 2004.


O MURMÚRIO – A CIFRA

1

A força da palavra é descer, não é voar. Sua desordem necessária é mortal e sincera. Palavras não têm paz. Que poetas são esses que as tranquilizam? Florear poemas é esconder espinhos. Poesia não são poemas para a poesia. Falar de si é porfiar com o labirinto. A poesia talvez seja arrancar nomes daqueles que se dizem próprios, revolver o inferno – amar o impossível, retribuir enigmas aos deuses, deixá-los confusos com o olhar que olha o que não se vê. Pois, quem canta, canta só. Quem ama, ama só. Quem navega, navega só. Contra o vento, contra o sol, contra a língua.

Um mar corre o risco das tempestades ou das calmarias. Salta o salmão sobre a correnteza. Salta e cai para rescrever o rio. Assim Orfeu despedaça-se. A força da palavra é descer. Queimar suas asas, revolver as cinzas e dar-lhe a brasa que ao lume falta. Digo isso com a prática dos precipícios, com as orações dos abismos à contraluz do fim.

Se eu me contentar com uma uma palavra, à contraluz do fim. Se eu me contentar com a luz à contraluz do fim. Se eu me contentar com o fim, que recomeço me espera?

Vencer sem armas, vencer o inimigo inexistente. Depor as armas.

Depor.

Resignar.
Arrancar as raízes.

2.

Poetas! Consertai as redes que a cabeça de Orfeu é onde a língua despedaçada fala

Que é o corpo despedaçado, e murmura.

Cifra por cifra, tua língua é tua apenas. Sim Orfeu, agora é do inferno que vem o canto mais puro. A voz do deserto clama; a voz da razão fia. Sim Orfeu, sua cabeça sobre os relâmpagos. O murmúrio é que agita o reino e o espírito.

Uma palavra começa; uma palavra termina.

Do livro “A Torre de Hölderlin”, Antologia Luz,
2004.     




RIOBALDO & RIMBAUD

— Sou um rio.
— Eu, um barco.
— E quem escreve?
— A mão que empunha o arco.
— Sou a água.
— Não posso bebê-la.
— Capinar sozinho, debulhar estrelas...
    Onde estiveste, depois que escreveste?
— Nas maresias, nas maresias...
 Ah, se eu pudesse mesmo gostar de Diadorim, o sorriso dele me dobrava como uma curva de rio, agora sei porque te chamas Rio... o Do-Chico...
— Êpa, o meu Diadorim é meu.
— Não é, é a tua neblina.
— Já sei, não recitar em francês é um crime:

          Par délicatesse
          J’ai perdu ma vie.

— Compadre, a gente viemos do inferno, duns lugares inferiores, deixe os  leitores... foi nessas veredas que Diadorim morreu.
— É, deixe de pacto, vamos vender as nossas armas.
— Antes, quero os cabelos de Diadorim.
— Tome esta tesoura de prata e esta caneta, escreva...
Diadorim não morreu, virou o meu sol...

     Do livro “Elegia em 1999”, da Antologia O Livro da Malta2008.



A TRILOGIA DO BEIJA-FLOR

1.
TODO BEIJA-FLOR quando nasce é imperceptível, e ao nascer é do tamanho de outro beija-flor. Todo beija-flor aprende a eternidade das flores. É breve o seu beijo, é breve o seu desejo, é intenso o seu voo. Todo beija-flor tem asas invisíveis para não tocar o vento. Todo beija-flor vive em êxtase: não canta.
2.
TODO BEIJA-FLOR quando encontra outro beija-flor não reparte a mesma flor. O voo não é lugar para nada cuidar, o voo é o nada vacilante no ar. Toda flor é um convite e todo beija-flor traz no peito um emblema de um reino feliz. Todo beija-flor é de utilidade pública, é patrimônio universal da poesia.
3.
TODO BEIJA-FLOR quando morre não vai para o céu dos beija-flores. Todo beija-flor quando morre se transforma numa coisinha leve e sem osso que a terra não consegue fincar. Todo beija-flor quando morre vai para a letra de um poema.


     Do livro “Elegia em 1999”, da Antologia O Livro da Malta, 2008.



É O VENENO QUE DÁ A VIDA
                            
                  Was bleibt aber, stiften die Dichter.
                       (O que fica é fundado pelos poetas)
                                              HÖLDERLIN

É o veneno que dá a vida
É o abismo que dá as asas
É o medo que dá a crença
É a crença que dá o viço.

É a morte que dá a vida
É a vida que dá a obra.
É a realidade que dá a verdade
É a verdade que dá conta disso.

É a palavra que dá o mundo
É o homem que se adianta
É o poema que dá o troco

É a poesia o que aviva
É a palavra que dá e tira
É a poesia o que fica.


Do livro “Elegia em 1999”, da Antologia O Livro da Malta2008.


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