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LUCIANA BRANDÃO CARREIRA E A LETRA E A ÁGUA


Ela lançou o seu terceiro livro sob a égide da água, esse elemento nunca quieto, exemplo máximo no Taoísmo do como superar os obstáculos, sem confrontá-los, e sim contorná-los, uma vez que o caminho da água é sempre para onde haja o fluir. A epígrafe de Herberto Helder atinge esse deslizar necessário à escrita entre a pele e a mudez primordial do verbo e anuncia a obra: "Só a água fala nos buracos. A Água tem um som. Mar inesgotável que deslia no silêncio". 

Os poemas de Luciana Brandão Carreira pedem um "leitor carnívoro à flor da pele", como diz outro verso seu. Ela diz que "nada existe além de um grande esforço da voz", palavras do poema Minuta, página 30 de seu mais novo livro. E é por essa novidade que eu convido vocês a lerem este livro que traz posfácio do professor Paulo Maués Correa, outro incansável pesquisador das letras amazônicas.

E foi sob essa provocação de escrita e corpo que eu fiz as três perguntas à Luciana Brandão Carreira, poeta que nos brinda agora com o seu A Letra da Água, Belém, PA : Paka Tatu, 2017. 


Entrevista de Luciana Brandão Carreira concedida ao poeta BENILTON CRUZ – no BLOG ANTRE PALAVRAS, no dia 02 de novembro de 2017.


1   Benilton Cruz: Como situar o livro “A letra da Água” na sua trajetória literária?

Luciana Brandão Carreira: O “A letra da Água” é o meu terceiro livro publicado, o segundo de poemas. Para mim, ele situa a minha escrita numa vertente em que o amor o determina. Ele nasce nesse novo tempo de exílio no qual me lancei, em que novamente saí do Brasil, desta vez para Portugal, a fim de viver o amor numa singular vertente: a liberdade. A liberdade em relação à rotina de trabalho que mantenho no Brasil, a liberdade para não atender a demandas senão as da própria escrita, a liberdade para ler e escrever por amor e desejo, escolha derivada de uma vital necessidade. Sinto o “A letra da Água” como um livro que tenta traduzir o intraduzível dessa experiência, nesse meu encontro com a língua materna. É também o livro que dedico ao Daniel, esse amor nascido também da escrita.

Benilton Cruz: Percebe-se em seus novos poemas uma relação da palavra com o corpo, um enlace vivo e fluido. Eu te pergunto: toda escrita está diretamente ligada ao corpo e suas nuances?

Luciana Brandão Carreira: Acredito que não, que nem toda escrita esteja diretamente ligada ao corpo. Minha resposta tem como base o modo como eu sinto e leio alguns textos. Para que uma determinada produção escrita se faça com o corpo, mantendo-o direta e indissociavelmente ligado à linguagem, é preciso uma aproximação com os próprios limites da linguagem, muitas vezes deformando-a e reinventando-a. E transpor os limites da linguagem significa engendrar o ilimitado pelas bordas do discurso. Essa modalidade de texto aponta para uma abertura, para uma transgressão, à tentativa de se ir além dos limites da língua, do corpo e da narrativa. Numa trilha além do prazer, além do princípio do prazer.


Esse enlace vivo e fluido, na relação entre a palavra e o corpo, talvez nos transmita algo sobre o lugar vazio da morte enquanto abismo da significação, quando é preciso Dizer mas não se tem meios para fazê-lo. Talvez esses textos-limite nos cheguem de um lugar diferente de onde vêm as escritas que pretendem comunicar, dar sentido, significar −, por isso esses textos-limite são tão potentes, eróticos, poéticos e muitas vezes perturbadores. Ou, como testemunha Maria Gabriela Llansol: são textos concebidos na margem da língua, numa textualidade que se dirige ao que Barthes nomeou como Escritura, num além em relação à Literatura.

 Benilton Cruz: Mais evidentemente sua poesia é sensorial, verbal, vocálica, deglutição, sensual, e cheia do ato libertário da palavra, dentre outras coisas. Explique de forma sucinta a relação letra e água em seu novo livro.

Luciana Brandão Carreira: Agradeço por mais essa pergunta, embora eu não saiba como explicar de forma sucinta a relação letra e água em meu novo livro. Essa sensualidade que você menciona, ligada ao ato de escrever o corpo, faz ressoar em mim alguns dizeres de Roland Barthes. Tentarei responder evocando o seu ensaio O prazer do texto, quando Barthes assinala que determinados textos são um corpo erótico, quando ele também afirma que os ritmos literários correspondem aos ritmos corporais, que advêm a partir do trabalho realizado com a linguagem, cuja matéria prima é a palavra poética colocada em ato. 

O ritmo de determinados textos deriva desse compasso (ou desse pulso) corpóreo, reconhecido na leitura, na alternância ocorrida entre tempos de pausa e suspensão e os momentos em que a experiência de ler se faz veloz e desenfreada, por algumas imagens construídas no limite da voz, pelos abismos do significado. E embora eu não saiba como explicar de forma sucinta a relação letra e água em meu novo livro, talvez ele se faça nesse fluxo da linguagem um tanto à deriva, numa correnteza que a desloca da foz à nascente, do fim ao recomeço, a origem ligada à morte da linguagem, fonte essencial de vida. Quando o sopro da voz materna é murmúrio na pele do bebê, a linguagem de Eros se faz repercutir na sensualidade do toque entre os corpos. A água aparece como esse fluxo de sensações que a linguagem transporta, pela via da letra, da escrita que tenta dar conta de um indizível, quando a pulsão inscreve a sua pulsação e o ato libertário da palavra tenta mimetizar os movimentos de uma certa cosmogonia.
E já que eu não sei como explicar de forma sucinta a relação existente entre letra e água em meu novo livro, trago alguns poemas, à guisa de resposta, agradecendo pela entrevista.

bebedouro

Aguo um gole de tinta azul em litros de fluidez translúcida.
Gota espraiada no papel intacto,
esse bebedor tirânico,
a tingir os cinco raios da nova estrela:

os dedos da minha mão que neste instante me escrevem
nos sete sentidos em que me diluo.

consoante

vogais agudas
vazam das vagas
quebram da voz

letra

pingente em forma de gota
ponta da lança
pingo de vidro que estilhaça palavras


gota
casulo onde mora o oceano

estilete

o cume do lápis se escreve
conta-gotas das horas partidas
sob a tensão da matéria própria
na separação ao que resta da massa líquida
de um corpo



assinatura

filete d’água onde se concentra o espasmo
                                em tempos de estio



* Os poemas aqui publicados são todos do livro A letra da Água (Editora Pakatatu, 2017), da poeta Luciana Brandão Carreira. Trata-se do terceiro livro da autora, contemplado pelo edital de Seleção Pública de Patrocínio do Banco da Amazônia 2017.


** sobre a autora: Luciana Brandão Carreira é poeta e ensaísta, psicanalista e psiquiatra, doutora em Psicanálise pela UERJ com doutorado sanduíche na Université Paris XIII, França. Realizou pós-doutoramento em Estudos literários no Instituto de Literatura e Tradição (IELT) da Universidade Nova de Lisboa, Portugal, e segue pesquisadora da rede internacional de pesquisa Escritas da Experiência (Cnpq). É professora adjunto da Universidade do Estado do Pará (UEPA), supervisora clínica no Ambulatório de Saúde Mental do Centro de Ensino Superior do Pará (Cesupa), onde também compõe o corpo docente do Mestrado em Educação em Saúde. É autora dos livros ‘Entre’ (Verve, 2014), ‘Os tempos da escrita na obra de Clarice Lispector – no litoral entre a literatura e a psicanálise’ (Cia de Freud, 2014) e ‘A letra da Água’ (Pakatatu, 2017), com vários artigos publicados em revistas literárias e de psicanálise, além de em antologias. Foi contemplada em 2016 com o prêmio Carlos Drummond de Andrade de Literatura, concedido pelo Sesc do Distrito Federal, na categoria Poesia. É componente ativo do núcleo editorial da Revista de literatura Polichinello e colaboradora da Revista Caliban.


                                                                 Lisboa, pôr do sol, em dezembro.

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